Casado com uma psiquiatra, pai de uma filha diagnosticada com autismo e neto de um psiquiatra pioneiro que foi paciente do próprio Sigmund Freud. Com todas essas características, foi natural que o antropólogo Roy Richard Grinker, 61 anos, focasse sua pesquisa na área da saúde mental. Lançado no Brasil em março pela editora Arquipélago, o livro Ninguém é Normal: Como a Cultura Criou o Estigma do Transtorno Mental se debruça sobre as características das sociedades sobre as quais pesquisou que tornam a condição de quem tem algum transtorno mental algo que define a sua existência ou não. Em entrevista a GZH, Grinker, que é doutor em Antropologia Social pela Universidade de Harvard e professor na Universidade George Washington, ressalta o quanto faz diferença, no processo de inclusão e não estigmatização, uma cultura não individualista, que promova o cuidado das pessoas umas com as outras.
O senhor é um antropólogo social, uma área que talvez não se relacione tão naturalmente com os estudos de transtornos mentais. O que o fez se interessar por esse assunto?
Ao longo da minha carreira, tive contato com muitos especialistas em transtornos mentais que não eram antropólogos, mas tinham interesse por essa área. Nós não temos muitas informações sobre transtornos mentais na África Subsaariana, por exemplo, ou em alguns lugares da América Central, e a cultura é um elemento crucial para a experiência do sofrimento em geral. No entanto, a cultura está ausente em muitos estudos médicos. Os antropólogos que estudam doenças têm uma perspectiva distinta, porque fazem pesquisas de longo prazo sobre como a experiência de sofrer uma determinada doença ou distúrbio varia em todo o mundo. Tenho uma filha diagnosticada com autismo. Quando digo que tenho uma filha com autismo, sendo antropólogo, muitas pessoas dizem “puxa, você deve saber muito sobre eles”, se referindo a pessoas com autismo. Então, aos poucos fui me envolvendo nesses estudos.
Quais tipos de estigmas sofrem as pessoas com transtornos mentais? E quais as consequências desses estigmas?
Enquanto criança em uma família de psiquiatras, uma coisa que aprendi foi que há muito julgamento social em relação a pessoas que têm transtornos mentais. Pessoas sofrem com esses estigmas no mundo inteiro. Os transtornos mentais graves são acompanhados por sentimentos da população como medo e pânico, o que faz com que as pessoas que se comportam de maneiras que divergem das normas da sociedade sejam excluídas e abominadas. O estigma afasta as pessoas de buscar tratamento, em um contexto no qual, a cada ano, quase 20% dos norte-americanos adultos se enquadram nos critérios de transtorno mental. Todo mundo fica triste ou ansioso em algum momento, mas o maior estigma é gerado pelo fato de que as pessoas não têm controle sobre aquilo. Transtornos como o abuso de substâncias são muito estigmatizados: as pessoas são demitidas, as famílias as abandonam. Há consequências sérias, e temos que identificar as causas para eliminá-las.
É possível acabar com esse julgamento social?
Seria ótimo se pudéssemos. O câncer, por exemplo, já foi muito mais estigmatizado: quando eu era criança, as pessoas sequer falavam a palavra “câncer”. Hoje, depressão, ansiedade e outros transtornos estão começando a ser vistos como parte da condição das pessoas. Embora 60% das pessoas com transtornos mentais nos EUA ainda não recebam tratamento, eles estão se tornando uma parte mais aceita e visível da condição humana. Com a ajuda de cientistas e advogados, compreendemos que os transtornos mentais são muito mais comuns do que pensávamos, e que afetam a todos nós: todo mundo vai se relacionar com algum transtorno mental em algum momento de sua vida, seja você mesmo, seus pais, seus filhos. O medo e a vergonha da doença mental estão relacionados ao que os membros de uma sociedade consideram bom e ruim, e, ao longo dos anos, o que consideramos bom e ruim mudou.
Nem sempre se falou sobre transtornos mentais. Nós, enquanto sociedade, sempre os tivemos?
As pessoas experienciam seus transtornos de formas diferentes. Eu comparo, no livro, o início e o final do século 20, nesse sentido. No início, falava-se muito sobre sintomas físicos, como dor de barriga, de cabeça. Mas a razão dessas dores, muitas vezes, era um sofrimento emocional. Sentimentos como ansiedade, medo, paranoia e raiva passaram a ser percebidos de formas muito diversas, com a difusão da psicanálise. Antes dela, nós não discutíamos isso em lugar algum. Na Primeira Guerra Mundial, por exemplo, os soldados, ao voltarem dos campos de batalha, relatavam sintomas como dor de barriga, de cabeça. Na Segunda Guerra, passaram a falar que tinham medo, angústia. A forma como experienciamos nossos sentimentos e transtornos é diferente, agora.
Há especialistas que dizem que transtornos mentais deveriam ser vistos como uma doença como qualquer outra, para evitar o estigma. Eu não acredito nisso: se enxergarmos assim, mais assustadores ainda esses transtornos vão parecer. É preciso observar a interação entre os transtornos mentais e os físicos
Antes, não sabíamos denominar esses sentimentos?
Ainda hoje, parece um insulto dizer para alguém que uma dor de cabeça pode ser sinal de ansiedade – a pessoa pode ficar ofendida e questionar se seu interlocutor acha que ela está inventando aquela dor. Isso acontece porque tendemos a separar os sintomas entre físicos e mentais, e isso é falso, pois ambos podem estar interligados. Ao redor do mundo, muitas sociedades não fazem distinções entre sintomas físicos e mentais. Nos EUA, foi feita essa diferenciação, e se passou a entender os transtornos mentais como menos reais do que os físicos, como algo que não pode ser tratado. A ideia geral é que os transtornos físicos são causados por vírus, bactérias e não são sua culpa, mas as pessoas ainda são culpabilizadas pelas suas doenças mentais. É esse estigma que temos que enfrentar. Há especialistas que dizem que transtornos mentais deveriam ser vistos como uma doença como qualquer outra, para evitar o estigma. Eu não acredito nisso: se enxergarmos assim, mais assustadores ainda esses transtornos vão parecer. É preciso observar a interação entre os transtornos mentais e os físicos, e ainda é muito necessário investir em tratamentos e suporte social para pessoas que têm transtornos mentais.
O senhor fez pesquisas sobre autismo, transtornos mentais e neurodiversidade na África Subsaariana e na Coreia do Sul, experiência que menciona no livro. Que diversidade encontrou nesses lugares, na forma como questões de saúde mental são enxergadas?
Muitas vezes, parece haver duas formas dramaticamente diferentes de enxergar essas questões. Em uma aldeia na Namíbia, conheci um homem que, às vezes, ouvia vozes raivosas na sua cabeça. Ele foi atendido por uma ONG e passou a receber medicamentos antipsicóticos para controlar suas alucinações, e os medicamentos funcionaram muito bem. Então, ele passou a ir todo mês buscar mais remédio. Seu diagnóstico na clínica foi de esquizofrenia. No idioma que ele falava, não havia uma palavra para denominar esquizofrenia. Ele vive a 20 quilômetros de distância dessa clínica e, onde ele morava, sua doença era explicada porque os espíritos pousaram no seu corpo aleatoriamente, ou seja, ele não tem culpa. A doença não o define: ela pousou dentro dele, talvez enviada por um inimigo, talvez por vingança, enviada por uma entidade sobrenatural, mas, de qualquer forma, não é culpa dele. Em apenas 20 quilômetros de distância, em um lugar ele era visto como o portador de uma doença que é considerada cerebral, na qual tudo é sobre ele, ou como alguém que tem uma doença que faz parte de toda a sociedade e da qual ele é vítima, e não alguém com uma mente ruim, ou com um mau caráter. Pode ser que as pessoas tenham medo dele em ambos os lugares e talvez, quando ele estiver sofrendo alucinações, seja assustador, mas isso não vai marcá-lo pelo resto de sua vida como um doente, desde que ele esteja tomando o seu remédio. Na clínica, ele tem esquizofrenia sempre, mas, na aldeia, ele só é considerado doente quando tem os sintomas.
O que mais evita o estigma (dos transtornos mentais) são arranjos sociais que envolvem o cuidado de um para com o outro. o estigma não vem da ignorância ou falta de conhecimento; vem da criação, da cultura em que se está.
Nos EUA, como uma situação como essa seria vivida?
Vou dar outro exemplo: nos EUA, mais de 15 anos atrás, várias meninas de uma escola de Ensino Médio em Nova York começaram a ter o que pareciam convulsões. Parecia epilepsia, mas não era: era algum problema motor que as fazia perder o controle, até bater a cabeça. Na época, você tinha psiquiatras dizendo que elas sofriam de algum problema emocional, porque todas estavam agindo da mesma forma e, sem receber cuidados, estavam expressando inconscientemente o seu sofrimento através de um conjunto de sintomas físicos comuns. No entanto, outras pessoas disseram que não, porque como um sofrimento emocional poderia fazer com que as pessoas agissem daquela maneira? No entendimento dessas pessoas, a causa deveria ser algum veneno, algo na água, um vírus ou uma bactéria. Eles não conseguiram entender a relação entre ambos os sintomas, e as meninas e suas famílias não estavam dispostas a pensar que o seu sofrimento se devia a uma doença mental: quando os psiquiatras disseram que aquilo poderia ser uma doença mental, sentiram que tinham de se defender, como se estivessem sendo acusados, de alguma forma, de terem feito algo de errado. De novo: no mesmo local, duas formas muito diferentes de se encarar o sofrimento. A parte boa é que eu acho que estamos fazendo melhorias significativas. Meus alunos nunca falavam sobre doenças mentais e, agora, fazem isso o tempo todo. Eles vêm até mim e dizem que têm depressão, ansiedade ou algo assim. Quando se abrem sobre isso, eles assumem o controle da situação que eles próprios definem e, assim, não deixam que outras pessoas a definam por eles. Em Ninguém é Normal, conto a história de uma das minhas alunas, que era caloura, e eu perguntei: qual foi o melhor dia do seu primeiro ano de graduação? Ela disse que o melhor dia foi quando ela foi diagnosticada com TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade). Perguntei o porquê e ela disse que seus pais sempre lhe disseram que ela não tirava boas notas porque não estudava o suficiente, que era preguiçosa ou, talvez, não fosse inteligente. Com o diagnóstico, pela primeira vez ela viu que não era preguiçosa ou burra, mas que só precisava de alguns apoios, incluindo medicamentos. Assim, o TDAH lhe proporcionou uma autoestima muito maior, que lhe faltava no Ensino Médio.
O número de pessoas com transtornos mentais cresceu nos últimos anos, ou nós apenas temos mais acesso ao diagnóstico delas?
Essa é uma pergunta difícil de responder, porque você só consegue calcular o que pode ver: se as pessoas não têm um diagnóstico em uma clínica, escola ou registro de plano de saúde, a condição delas seguirá invisível. Também depende de como mensuramos os transtornos mentais. Quando é uma emoção normal e quando é um transtorno mental? Todos nós temos ansiedade, porque vivemos no mundo. Sem ansiedade, você vai ser atropelado pelo carro, porque não vai acelerar para evitar o atrito. No entanto, uma ansiedade normal vai lhe permitir sair de casa, coisa que quem tem uma ansiedade mais forte pode nem conseguir. A realidade é que não sabemos se temos transtornos mentais mais graves do que já tivemos em outros momentos, porque quando se mensura a ocorrência das doenças, é difícil chegar a números precisos.
Quanto mais pessoas falarem sobre isso (transtornos mentais), na literatura, nos filmes, nas músicas, de forma sensível e não estigmatizada, mais poderemos nos abrir para a ideia de que é parte da condição humana. é meio que normal, na verdade.
No livro, o senhor apresenta diferentes experiências na forma como cada cultura lida com os transtornos mentais. O que o senhor identifica que evitou a criação de estigmas?
O que mais evita o estigma são arranjos sociais que envolvem o cuidado de um para com o outro. Sociedades que demandam um total autocontrole de seus cidadãos são as que mais geram estigmas. Por outro lado, onde até é esperado que pessoas com transtornos mentais trabalhem, mesmo que não necessariamente sozinhas, e que possam contribuir com o que puderem, há menos estigma. Sei que não é simples, porque essa capacidade de contribuição vai depender do transtorno que a pessoa tem. O esquizofrênico pode ser visto de uma forma muito negativa em alguns lugares, mas, dependendo, ele pode casar, ter filhos, trabalhar, porque recebe um suporte social. Há uma pesquisa clássica que mostra que, apesar de a esquizofrenia existir em todo o mundo, em Londres e em Washington eram registrados os piores surtos. Na Índia e na Nigéria estavam os surtos mais leves. Nunca se soube exatamente o porquê, mas a única coisa em que eu consigo pensar é que tem a ver com a existência de mais suporte social. Muita gente diz que o estigma diminui quando há consciência sobre os transtornos. Não: o estigma não vem da ignorância ou falta de conhecimento; vem da criação, da cultura em que se está.
Temer o que é diferente talvez seja a essência do que causa o estigma. Como podemos evitar que as pessoas tenham medo de quem tem transtornos mentais?
Não sei responder isso, mas acho que, quanto mais pessoas falarem sobre isso entre si, na literatura, nos filmes, nas músicas, de forma sensível e não estigmatizada, mais poderemos nos abrir para a ideia de que o transtorno mental é parte da condição humana. Ele é meio que normal, na verdade. Se você vê o transtorno mental como normal, vai ver que não é preciso ter medo. Se alguém está com gripe, eu não digo que a pessoa é ruim porque está gripada. No Brasil, conheci uma mulher que estava pesquisando em um local do país no qual diretores de escolas diziam aos pais que seus filhos tinham problemas de atenção. Quando o diretor dizia que o problema de atenção existia porque aquela família era pobre, o que fazia com que a criança se preocupasse com questões como a alimentação e outros aspectos que lhe tiravam a concentração, a tendência era de que eles aceitassem mais a ajuda para resolver a situação, porque o diretor estava, com aquilo, falando sobre algo que fazia sentido para eles. Nos EUA e na Europa, é comum os profissionais da saúde dizerem que um transtorno mental é causado por algo físico do cérebro, e isso não ajuda ninguém. O que ajuda é dizer o que pode ajudar. No livro, cito o caso de um lugar onde havia muitas pessoas com depressão sem atendimento. Foi aberta, então, uma clínica chamada Clínica da Depressão. Ninguém procurou atendimento. Seis meses depois, outra clínica foi aberta, com o nome Clínica de Dor de Cabeça e Fadiga. Nessa, muitos foram, e muitos tinham sintomas devido à depressão. É preciso encontrar um jeito de atrair as pessoas para o tratamento.
Nomear transtornos mentais ajuda ou atrapalha aqueles que têm aquela condição?
Minha filha tem autismo. Quando ela foi fazer seu discurso de formatura, começou a falar e era possível ouvir as crianças cochichando e rindo. Esse é um sinal do estigma. Aí, quando ela chegou à parte em que mencionou que tinha autismo, todo mundo parou de cochichar, porque entendeu. O autismo pode não ser o transtorno mental mais estigmatizado. Ainda assim, falar sobre isso é um instrumento para promover o entendimento. Quem tem 60 anos e é diagnosticado com autismo não vai precisar de um tratamento profundo, porque, se chegou até ali sem o diagnóstico, não tem grandes necessidades de suporte, mas, com o diagnóstico, vai se entender melhor. Vai pensar: “Ah, é por isso que eu me sentia estranho daquele jeito”. As deficiências físicas você vê. Transtornos mentais, nem sempre.
O que lhe surpreendeu mais em sua pesquisa?
Me surpreendi com o quão rápido as coisas podem mudar. Na Coreia do Sul, fiz uma pesquisa sobre autismo há cerca de 20 anos, e ninguém falava sobre isso. Lembro que os profissionais de saúde falavam que não havia muitos autistas lá, e, quando eu dizia que tinha uma autista na minha família, as pessoas paravam de falar comigo, por medo do que iam dizer sobre elas. Agora, falamos muito sobre isso em todos os lugares. Em menos de 20 anos, as coisas mudaram muito, o que causou a melhora na vida de muita gente. Sou um otimista: estamos percebendo que não existe o normal e o não normal. Ninguém é um e nem o outro. Esse é o conceito da neurodiversidade. Pode haver uma demanda por cuidados, mas também há uma celebração das diferenças. Ser neurodiverso não significa que você é feliz, ou que não terá depressão, mas pode ser que, entendendo aquilo, você esteja mais perto da felicidade do que os outros estão.