Há uma linha que conecta um sofrimento mental – o ressentimento – ao atual cenário da política brasileira, defende a psicóloga e psicanalista Maria Rita Kehl, 70 anos, uma das maiores pensadoras do país hoje. Doutora em Psicanálise, ela integrou a Comissão Nacional da Verdade, que, no governo Dilma Rousseff, investigou os crimes da ditadura militar. É a autora de livros como O Tempo e o Cão – A Atualidade das Depressões, vencedor do prêmio Jabuti em 2010, e Ressentimento, publicado em 2007 mas que ganhou uma versão atualizada em 2020, pela editora Boitempo. Nesta entrevista, concedida a GZH a partir de trocas de e-mails a pedido da entrevistada (“Sou muito dispersiva em minhas conversas e muito sintética em minha escrita!”, justificou), explica o que considera serem os “ressentidos” no Brasil atual e defende que as redes sociais não são uma arena para o debate público.
No livro Ressentimento, a senhora escreve que o ressentido não é alguém incapaz de esquecer ou perdoar, mas uma pessoa que não quer esquecer, não quer perdoar, não quer superar o mal que o vitimou. O que está por trás do ressentimento?
Por que o sujeito não quer se esquecer de um agravo, de uma ofensa? Em geral, porque não reagiu à altura quando aconteceu. É nesses casos que a pessoa costuma ficar remoendo depois, ressentindo a mesma mágoa, a mesma ofensa. O que motiva o ressentimento, em geral, é uma pretensão de pureza moral – “Estou acima dessas coisas” – que impede o sujeito de reagir. Claro que a reação não tem de ser violenta. “O castigo que vou te dar é o desprezo”, diz a letra de um samba de dona Yvone Lara. Mas veja: o sambista, aqui, declara seu desprezo a quem o abandonou. Essa é sua reação, muito melhor, aliás, do que uma reação física violenta – como alguns homens até hoje fazem com mulheres que traem ou querem se separar. Mas aí também não é ressentimento, é brutalidade machista – não entra no nosso assunto.
Existem atos imperdoáveis? Como transformar o ressentimento em perdão?
É claro que existem atos imperdoáveis. Os pais e as mães dos desaparecidos políticos durante a ditadura militar não conseguiriam perdoar os torturadores, nem os generais, seus mandantes. A “cura” dessa impossibilidade de esquecer seria, no mínimo, que o Estado na democracia prestasse contas das condições dos desaparecimentos. A manutenção ativa da busca e a expectativa de condenação dos assassinos, nesse caso, não é ressentimento. É busca por justiça. Até o fim dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, os familiares dos desaparecidos ainda mantinham a esperança de saber o paradeiro de seus filhos e filhas. E nos ajudaram ativamente nisso, em grandes audiências públicas nas quais revelavam tudo o que sabiam e o que tinham sofrido. Não como ressentidos, mas como lutadores pela justiça – que não veio nem com a Comissão Nacional da Verdade.
A senhora relaciona o ressentimento à falta de justiça. É preciso haver justiça para o ressentimento ser vencido? É possível superar o ressentimento se uma pessoa foi injustiçada?
A falta de justiça produz revolta, o que é bem diferente do ressentimento. O ressentimento é um afeto que resulta de uma ou várias ações do próprio sujeito que o prejudicaram – mas ele não quer admitir que, por interesse ou covardia, se deixou prejudicar. Por isso re-sente, ou seja, não quer superar a mágoa. Quer alimentá-la. “Nunca vou me esquecer do que ele/ela me fez!” Por que esse apego ao dano? Para não ter de encarar sua própria covardia, ou por ter tentado levar alguma vantagem numa operação escusa que não deu certo etc. O sujeito se ressente para evitar de se arrepender.
Há relação entre ressentimento e política, segundo a senhora defende, dizendo que o ressentimento é próprio das democracias modernas. Por quê?
Na democracia, ao contrário do que acontece nos regimes monárquicos ou ditatoriais, os sujeitos não estão submetidos a um Estado soberano (no caso das realezas) ou autoritário. Nessas condições, ou o sujeito se fascina com o poder – é o que as monarquias produzem, com seus rituais e pompas – ou se revolta, ainda que seja arriscado. Nas democracias, o sujeito escolhe quem vai dirigir o país. E, muitas vezes nesse processo, se decepciona. Além disso, as democracias são regidas por pressupostos de igualdade de direitos, que, no entanto, raramente se realizam. Ou os excluídos lutam para conquistar direitos ou, quando se acomodam e esperam que o Estado resolva a desigualdade, tendem a se ressentir – que é uma forma neurótica do arrependimento. Espero que os eleitores do atual presidente do Brasil estejam revoltados, não ressentidos. A revolta é ativa, vai em busca de combater a opressão. O ressentimento, diz Nietzsche, é uma revolta passiva.
A falta de justiça produz revolta, o que é bem diferente do ressentimento. O ressentimento é um afeto que resulta de uma ou várias ações do próprio sujeito que o prejudicaram – mas ele não quer admitir que, por interesse ou covardia, se deixou prejudicar. Por isso ‘re-sente’, ou seja, não quer superar a mágoa. Quer alimentá-la. O sujeito se ressente para evitar de se arrepender.
Como a senhora entende que a ascensão das minorias causou ressentimento nas parcelas mais conservadoras? A senhora vê alguma forma de superar esse ressentimento?
O Brasil é um país tão desigual há tantos séculos que a desigualdade se naturalizou. Fomos o último país livre a abolir a escravidão! Depois da abolição – que se deu sem reparação para os descendentes de africanos, ressalte-se –, naturalizou-se a “inferioridade” dos ex-escravizados. Os negros, no Brasil, rarissimamente ascendem às classes médias, ao contrário do que acontece, por exemplo, nos Estados Unidos. Pois quando, com o regime de cotas nas universidades e o aumento do emprego durante o governo Lula, começamos a encontrar algumas famílias afrodescendentes viajando de avião, isso causou um enorme mal-estar. Cheguei a ouvir, em uma fila de embarque: “Este aeroporto está parecendo uma rodoviária!”. Como se a presença deles roubasse das classes média e alta seu sentimento de privilégio...
A senhora já afirmou que Jair Bolsonaro representa os ressentidos do Brasil. Quem são esses ressentidos e como o presidente os representa?
Bem, eu precisaria ter acesso a pesquisas de opinião muito detalhadas para saber quem são. Minha hipótese – veja bem, hipótese – é de que são os antipetistas, os que odiavam a Dilma e comemoraram seu impeachment, os que acreditaram na Lava-Jato e votaram em Bolsonaro acreditando que ele representava o oposto de “tudo o que está aí”. Mas também são os que se revoltaram com as pesquisas da Comissão Nacional da Verdade e, reativamente, acharam que a volta da ditadura seria uma boa ideia. Não é fácil admitir que houve um regime autoritário que torturou, matou e desapareceu com os corpos de 132 pessoas enquanto você cantava “Pra frente, Brasil” e assistia normalmente às novelas da TV. Vimos cartazes – poucos, ok – pró-ditadura naquelas passeatas imensas e desorientadas de 2013. Parte dessas pessoas votou, em 2018, em um novato que representava o ressentimento delas. Um deputado que ostentou o livro do Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador da Dilma Rousseff, na sessão da Câmara dos Deputados ao votar pelo seu impeachment.
A senhora escreveu, em um texto recente, que as ações do presidente Jair Bolsonaro contribuem para deteriorar o mínimo de civilidade que a sociedade brasileira tem. Mas há, em outros países, presidentes com a mesma retórica, o que indica que o fenômeno não é específico do Brasil. Há uma nova crise na modernidade?
Parece-me que há uma crise em relação à democracia, sim. Mas não me considero capaz de explicá-la.
Muitas pessoas têm buscado análise nesse período que junta a ascensão do bolsonarismo com o isolamento forçado em função da pandemia, porque estão mais angustiadas ou mesmo deprimidas. Mas, na minha experiência, isso não quer dizer que elas fiquem falando de política. Simplesmente está tudo difícil demais, angustiante demais.
Há como dialogar com quem divulga desinformação e é contra a ciência e, por exemplo, a vacinação das pessoas? Se sim, como?
Deve haver como dialogar, sim, mas para isso é preciso que a pessoa tenha alguma abertura e alguma capacidade de duvidar de si mesma. Se houver abertura, imagino que seja possível questionar o sujeito que é antivacina: “Sabe que você talvez tenha escapado de morrer de sarampo ou de ser vítima de poliomielite porque na sua infância seus pais te vacinaram?”. Se for só um desinformado, talvez ele reflita. Se for convicto, duvido.
Nos aproximamos de novas eleições presidenciais. o pré-candidato e ex-presidente Lula declarou há pouco tempo que o aborto legalizado precisa ser colocado em pauta. Bolsonaro se apressou para dizer que o aborto não deve ser aprovado no Brasil. Caminhamos para mais um pleito de guerras culturais?
Acho que não, porque Lula logo percebeu que essa não é uma demanda da sociedade brasileira – infelizmente – e recuou logo depois. Pessoalmente, sou favorável à descriminalização do aborto. Os que lutam contra dizem que o aborto é contra a vida. Sim, a mulher que engravidou por descuido, ou por ter sido estuprada, está desistindo, ao abortar, de levar adiante aquela vida que começa a se desenvolver em seu útero. Mas será que o embrião abortado – ou perdido no começo de uma gravidez desejada – é considerado, pelas práticas morais e sociais, uma vida humana? Não é. O argumento é simples: o embrião abortado vai parar no lixo. Não tem um funeral que o inclua entre os rituais que dão sentido à morte de seres humanos. Não tem seu nome marcado em uma lápide. Basta levar em conta isso. O resto é hipocrisia e moralismo contra a sexualidade da mulher, porque os moralistas não se interessam caso ela tenha sido estuprada pelo próprio companheiro, ou por um assaltante, assim como não se escandalizam se ela morrer no parto porque não poderia ter engravidado.
A senhora percebe uma busca maior por terapia nos últimos anos? Em diversas universidades, Psicologia se tornou o segundo curso mais concorrido, depois da Medicina. E muita gente parece querer estudar Psicanálise. O que pode explicar isso?
Você fez duas perguntas diferentes nesse enunciado. Sim, muitas pessoas têm buscado análise agora, nesse período que junta a ascensão do bolsonarismo com o isolamento forçado em função da pandemia, porque estão mais angustiadas ou mesmo deprimidas. Mas, na minha experiência, isso não quer dizer que elas fiquem falando de política. Simplesmente está tudo difícil demais, angustiante demais. A resposta para a outra parte da pergunta talvez derive dessa primeira, não é? Mas não tenho informações suficientes para ir além na reflexão.
Acho que a impaciência e a ansiedade vão passar com o tempo, mas acho perigoso, socialmente, se as novas gerações se deixarem guiar pelas redes sociais e não pelo debate em ‘praça pública’ – por exemplo, a escola –, onde existem dispositivos dialógicos para diminuir a influência tanto de informações falsas quanto de pretensos sabichões messiânicos.
No Brasil, um fenômeno incomum seu deu com a covid-19: pais se vacinaram massivamente, mas não seus filhos, que são o bem maior para pais e mães. Não é contraditório? O que pode estar por trás disso?
Bem, se os filhos são pequenos, não têm essa opção de vacinar-se ou não. Os pais sensatos os levam ao posto de saúde e pronto. Quanto aos adolescentes, vai saber. Não imagino que sejam todos negacionistas. Talvez seja uma rebeldia típica dessa fase da vida, que se espalha também pelo medo de ser zoado pelos amigos. A adolescência é um período lindo da vida, mas também é o mais opressivo. A pessoa se liberta – relativamente – da influência dos pais para cair no pavor de não ser aprovado ou não pelos outros adolescentes.
Como a senhora diferencia a forma como os brasileiros lidaram com a pandemia e como os habitantes de países ricos lidaram?
Não sei responder. Não tenho, ou não li, estatísticas sobre isso. Talvez valha especular: o país mais rico do mundo (Estados Unidos), se ainda fosse trumpista, estaria negando a pandemia? Recusando vacinas? Divulgando que quem se vacinar pode virar jacaré?
As novas gerações se relacionam cada vez mais mediadas pelas redes sociais. A pandemia acentuou esse movimento, em meio à imposição do ensino remoto. Na retomada, pais e professores relatam impaciência e ansiedade em jovens. Teremos uma “geração pandemia”?
Ainda precisamos refletir a respeito da versão contemporânea da “psicologia das massas” freudiana. Freud escreveu, em 1920 – em plena ascensão do nazismo na Alemanha –, que as massas buscam, no líder carismático e autoritário, uma versão imaginária do pai da infância, ao mesmo tempo protetor e tirânico. A adesão das massas a um líder é movida pelo terror ao desamparo, sem que as pessoas se deem conta – e agora não é Freud – que estarão muito mais desamparadas se abandonarem sua capacidade de refletir e se entregarem ao comando do “führer”. No caso das redes sociais, o fenômeno é diferente: não há um führer regendo acima de todos, mas o medo de decidir sozinho, pensar por sua conta e risco, se repete. Acho que a impaciência e a ansiedade vão passar com o tempo, mas continuo achando perigoso, socialmente, se as novas gerações se deixarem guiar pelas redes sociais e não pelo debate em “praça pública” – por exemplo, a escola –, onde existem dispositivos dialógicos para diminuir a influência tanto de informações falsas quanto de pretensos sabichões messiânicos.