Assim como em muitas famílias, a pandemia do coronavírus alterou o comportamento das duas filhas da microempresária Jeanine Pedroso, 49. Maithê perdeu, aos 13 anos, o longevo interesse por balé, mas as maiores alterações foram com Anthônia, de seis, que se apegou ainda mais à mãe e adquiriu certas manhas que antes não tinha.
– A Anthônia ficou ainda mais grudada em mim, pede muito colo. A Maithê ficou mais na dela e perdeu um pouco o interesse nas aulas de dança. Acho que é porque não há mais o abraço com as colegas, a troca de intimidades. Em compensação, passa o dia inteiro dançando pela casa – afirma a mãe.
Para reduzir o tempo de Anthônia no celular, Jeanine deu à filha tintas e pincéis. A pequena passou a brincar diariamente e, em dias de sol, pinta no pátio da casa localizada em São Leopoldo, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Eram tantos desenhos que a mãe questionou:
– Filha, o que tu vais fazer com tantas pinturas?
– Vou guardar. Quando as aulas voltarem, vou dar para a “profe” e pras minhas amigas.
O isolamento em casa, a ausência da escola, o excesso de tempo em frente ao celular, a proximidade da morte em meio à primeira pandemia nas redes sociais e a profunda crise econômica podem reconfigurar a forma como a juventude se relaciona com o mundo.
Analistas agora discutem: qual será o impacto da pandemia a longo prazo para a juventude que viverá um novo mundo? Tradicionalmente, enquanto adultos carregam o “sotaque” dos velhos tempos, jovens simplesmente encaram as mudanças como “o” normal, já que têm menos repertório para comparar. Segundo analistas ouvidos por GZH, não será uma grande revolução comportamental a ponto de criar uma nova categoria à la “millennials” ou “baby boomers”. O que pode ocorrer é que hábitos da geração Z (indivíduos de 10 a 25 anos) sejam acentuados – sobretudo o uso da internet e a dificuldade em separar o mundo offline do digital.
Para os pequenos, atrasos para falar e andar e pequenas regressões no comportamento podem ser recuperados com dedicação dos pais, diz José Paulo Ferreira, médico da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul.
– No ambiente adequado, a criança aos poucos se organiza e volta ao normal. É como rodar de ano: não fica sequela para o adulto, só vai demorar mais para chegar ao fim – afirma Ferreira. – Em épocas de guerra, as regras têm que ser flexibilizadas. Não dá para ter a mesma cobrança. Pais têm que enxergar os filhos com olhar mais benevolente – reflete.
Para os mais velhos, as especulações aumentam, e há diferentes propostas para o pós-pandemia. O liberal britânico Timothy Garton Ash, professor da Universidade de Oxford, acredita que o futuro será mais à esquerda e ambientalista, com base no resultado de um estudo de seu grupo de pesquisa segundo o qual 71% dos europeus apoiam a renda básica universal. Já para a conservadora norte-americana Camille Paglia, haverá uma ascensão da direita, que, na sua visão, entende como funcionam o poder e a economia. Para compreender como mudanças sociais influenciam os jovens, vale dar um passo para atrás e olhar para as lições da História.
O passado ensina
Momentos traumáticos da humanidade costumam causar alguma mudança porque alteram a rotina de todos. Após a gripe espanhola e a Primeira Guerra Mundial reduzirem a população jovem, o governo alemão cortou investimentos em educação – e há estudos apontando que isso contribuiu para o avanço do nazismo, afirma o historiador Gunter Axt, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP).
A juventude tem uma necessidade de contato físico e social. O que vai sair da sua imersão nas telas? É o pós-humano? Estamos em um limiar cultural.
GUNTER AXT
Historiador
– Havia uma rede de educação pública deficiente para consolidar os valores da social-democracia. Muitos educadores falam nos prejuízos da educação a distância para uma nação inteira. Camille Paglia diz que os jovens estão de tal forma subsumidos nas telas que perdem a capacidade de ler expressões faciais e se tornam muito literais, não entendem ironias, e isso os torna mais conservadores. Será que essas aulas a distância não vão exacerbar esse tipo de situação? – questiona Axt.
Na Segunda Guerra Mundial, uma geração foi ao fronte de batalha ou testemunhou bombardeios e os horrores do nazismo. No pós-guerra, ficou conhecido o comportamento de indivíduos que estocavam alimentos e evitavam gastos supérfluos (aliás, semelhante ao comportamento de famílias brasileiras que ainda conservam o hábito de fazer o “rancho” uma vez por mês no mercado após o trauma da inflação galopante na década de 1990).
Em um contexto de terra arrasada, diversos países investiram nas economias e aprimoraram políticas de bem-estar social, o que favoreceu o surgimento dos baby boomers, nascidos entre 1946 e 1964: uma geração marcada pelo consumismo, pelo sonho da casa própria e de formar uma numerosa família de comercial de margarina.
– Havia uma rede de amparo social que estimulava a formar famílias e repor a população perdida na guerra, enquanto uma massa de gente ascende da classe operária para a classe média. Nos Estados Unidos, isso é muito claro, com rapazes que voltam da guerra e recebem pensões que permitem estudar ou pagar os estudos dos filhos – acrescenta Gunter Axt.
A sensação de que tudo pode mudar da noite para o dia traz um sentimento forte de insegurança quanto ao futuro e, portanto, uma busca maior por segurança.
DARIO CALDAS
Sociólogo
Outro exemplo é a epidemia de aids, que associou sexo gay a algo sujo – algo que ainda perdura, apesar de haver mais héteros soropositivos do que homossexuais e de remédios impedirem que um indivíduo com HIV passe o vírus para parceiro e filhos. O historiador associa essa epidemia à obsessão de muitos homossexuais em formar famílias “perfeitas”, como uma busca de viver à imagem de uma família hétero vista como pura.
O historiador cogita que a imersão dos jovens nas telas pode ser a antessala da chegada do “pós-humano”, um conceito que remete à fusão do homem com a máquina em um processo de “ciborguização”. Pode parecer distante, mas, para muitos, o celular é extensão do corpo.
– A juventude tem uma necessidade de contato físico e social. O que vai sair da sua imersão nas telas? É o pós-humano? A ideia do pós-humano é de uma fusão do homem com a máquina, mas também de uma mudança cultural. Há uma sanitização exagerada dos ambientes e também uma mudança no conceito da sexualidade, como no livro As Partículas Elementares, no qual o (escritor francês) Michel Houellebecq apresenta um protagonista sem interesse sexual. A máquina está mediando relações sociais, educacionais e políticas em um cenário de robôs nas redes. Estamos em um limiar cultural – analisa Axt.
Dentro de casa, as crianças têm todas as identidades vigiadas pelos pais. Construiremos gerações menos independentes porque pautadas pela gestão da família.
MICHEL ALCOFORADO
Antropólogo
Transar menos também é uma tendência apontada pelo doutor em Antropologia Michel Alcoforado, sócio-diretor da Consumoteca, de São Paulo. Seria uma consequência do que ele chama de “desmaterialização da vida”: impossibilitado de sair, o jovem se acostuma a se expressar no digital e a levar desejos para a internet – incluindo trabalho, educação e sexo. A frequência das relações, aliás, já vem caindo geração após geração.
– Os mais velhos acham que relação boa é quando vai para o real e que a masturbação é um sexo piorado. Esses jovens podem, pelo contrário, entender que determinados tipos de relação são melhor resolvidos pelas plataformas digitais e que se pode ter uma vida efetiva dentro do digital – afirma Alcoforado.
O isolamento social, diz o antropólogo, também descontextualiza: enquanto adultos já haviam criado múltiplas identidades sociais pré-pandemia (marido, pai, filho, colega, estudante, trabalhador...), os mais novos exercem fisicamente, por um tempo precioso, apenas a identidade de filho. As demais personas são criadas online e moldadas a bel-prazer.
– Imagine as crianças formadas nesse universo: não conseguem desenvolver outras identidades pela falta de outros contextos de vida porque estão sempre dentro de casa. Ficam no quarto, onde estudam e se divertem, tendo todas as identidades vigiadas pelos pais. Construiremos gerações menos independentes porque estarão pautadas pela gestão da família – afirma o antropólogo.
Por fim, a assepsia se torna outro marcador importante: com uma pandemia obcecada pela limpeza, beijar vira algo íntimo para um jovem que nunca o fez e que aprende no noticiário e com a família que o toque é perigoso. O contato plenamente seguro seria apenas na internet, vista como ambiente de refúgio – seja do vírus, seja do olhar da família.
– Vemos esse blablablá do documentário Dilema das Redes (disponível na Netflix) em torno de privacidade dos dados, mas isso não fará sentido aos mais jovens porque eles já nascem em um mundo sem privacidade. Isso não será uma questão para quem pode ter 20 perfis no Twitter, apagar posts no feed e ter uma identidade fluida. Por outro lado, a internet é o lugar dos ansiosos. Essa geração será marcada cada vez mais por crises de ansiedade – diz o antropólogo.
A ideia de sustentabilidade também deve ser reforçada para jovens de até 25 anos, ao lado de preocupações com alimentação equilibrada, exercícios e cuidados com corpo e mente, avalia Dario Caldas, sociólogo e diretor do Observatório de Sinais, em São Paulo. Plantas, inclusive, são os novos pets, em uma busca de aproximação à natureza.
– Isso (sustentabilidade) já era uma macrotendência de anos e agora se acentua. Os mais jovens farão ainda mais a conexão entre a pandemia e as mudanças climáticas, a pandemia e a natureza maltratada. É uma ideia de que não é possível ser individualmente saudável se o planeta não for saudável – observa Caldas.
A covid-19 interditou o corpo e o contato com o outro. Talvez o mundo da crianças tenha se tornado mais inseguro. A rua parece perigosa, mas também tem de ser atrativa. Se a família começa a criar crianças em bolhas, o coletivo esvazia, fica uma sociedade mais individualista, com cada família resolvendo seus problemas.
MARIA ÂNGELA BULHÕES
Psicóloga
Em meio a um cenário de insegurança e imprevisibilidade, os jovens podem buscar raízes e, com isso, endossar comportamentos típicos dos baby boomers, como a busca por casa própria, automóveis (promovidos nesta pandemia à categoria de transporte seguro) e uma carreira estável.
– A sensação de que tudo pode mudar da noite para o dia traz um sentimento forte de insegurança quanto ao futuro e, portanto, uma busca maior por segurança. Mais concretamente, projeta-se uma relação mais atenta com as finanças e uma revalorização de coisas aparentemente superadas pelos millennials, tipo carreira pública, casa própria e automóvel. Da pandemia, saem mais conservadores porque, quando a farinha é pouca, a gente precisa garantir o nosso pirão primeiro – argumenta o sociólogo.
Só não é possível ser fatídico, porque, frente a momentos de crise, indivíduos podem sair conservadores, mas também criativos, por conta da exigência de reinvenção para solucionar problemas, cita a psicóloga e professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Simone Bicca. Na prática, nada está escrito a ferro e fogo, e a resposta ao ambiente depende de cada indivíduo.
– As pessoas podem se movimentar no sentido de reconhecer que, até aqui, as coisas não funcionaram e que é preciso fazer diferente, ou podem pensar: e se o risco de mudar for maior? Também podem acontecer mesclagens: mudar aqui, mas ser conservador de outra forma – observa Simone.
O último ritual
O último rito de passagem à vida adulta, o vestibular, pode cair por terra e dar lugar a uma geração mais ligada aos pais, diz o historiador Gunther Axt. No passado, não havia propriamente uma ideia de adolescência: crianças viravam adultos a partir de um ritual tenso de transição – na Roma Antiga, isso ocorria se o menino, largado na selva nu e com uma lança e faca, sobrevivia dias a fio.
A juventude da forma como a conhecemos surge após os protestos de Maio de 1968, quando secundaristas e universitários, e não parlamentares de barba branca, foram protagonistas de um importante movimento político. Em seguida, o capitalismo vê a nova demanda por expressividade e oferece produtos aos jovens – surge uma moda descolada e antissistema, por exemplo.
Na modernidade ocidental, diz Axt, restou como rito de passagem o vestibular, que coloca o adolescente à prova. A entrada na universidade simboliza, também, o início da vida adulta. Mas até isso a pandemia tirou do jogo. Quem entrou no Ensino Superior fica em suspenso: não vivencia concretamente a faculdade e mantém uma rotina próxima àquela da escola.
A porto-alegrense Olga Kanitz, 19 anos, teve apenas duas semanas de vida universitária na Nutrição da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Participou de uma confraternização dos “bixos” e foi a uma festa. Em seguida, as aulas foram suspensas e só voltaram online no segundo semestre.
O primeiro ano de faculdade não é o que ela desejava, mas Olga evita pensar nas perdas e se agarra ao grupo que fez na empresa júnior de nutrição na qual atua como voluntária. O balanço da pandemia é positivo: as amigas formaram uma importante rede de suporte.
– Nas duas semanas em que tive aula, formei um grupo muito forte. Sinto que isso me fortalece bastante, mesmo a distância, e estou vivendo novas experiências. Apesar de toda a loucura, ainda está dentro das minhas expectativas. Às vezes é difícil, mas tento ver pelo lado positivo – diz Olga.
As pessoas podem se movimentar no sentido de reconhecer que, até aqui, as coisas não funcionaram e que é preciso fazer diferente, ou podem pensar: e se o risco de mudar for maior? Também podem acontecer mesclagens: mudar aqui, mas ser conservador de outra forma.
SIMONE BICCA
Psicóloga
Para além da privação desse ritual, jovens terão de lidar com um cenário de incertezas no mercado de trabalho ao longo dos próximos anos: estudo da Instituição Fiscal Independente do Senado aponta que o Brasil ficará com as contas no azul apenas em 2033. Hoje, 26% dos jovens de 18 a 25 anos estão desempregados, mais do que o dobro na comparação com a taxa geral da população brasileira, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O ano de 2020 deve terminar com uma queda de 9,1% no PIB, segundo projeção do Fundo Monetário Internacional (FMI). Isso ocorre, entre outros motivos, porque o país entrou numa nova crise sem ter se recuperado totalmente da recessão vivenciada entre 2014 e 2016.
Conforme vagas fecham, jovens superqualificados se candidatam a vagas que exigem menos estudo. Há um efeito escada no qual indivíduos com menor estudo, no último degrau, ficam sem emprego. Mas há saídas mundo afora para isso. O governo francês, por exemplo, prepara um programa de exoneração de impostos para empresas que contratarem menores de 25 anos. Em meio a esse cenário social que contribui para jovens crescerem em uma sociedade mais desigual e ansiosa, especialistas em saúde mental destacam o protagonismo de pais fornecerem suporte emocional aos filhos – estimulando autonomia e confiança.
– A covid-19 interditou o corpo e o contato com o outro. Talvez o mundo da crianças tenha se tornado mais inseguro. A rua parece perigosa, mas também tem de ser atrativa. Se a família começa a criar crianças em bolhas, o coletivo esvazia, fica uma sociedade mais individualista, com cada família resolvendo seus problemas. Temos de considerar que está difícil para todos e poder fazer todos viverem uma vivência menos dolorosa. Dizer: vamos ficar bem, lá na frente tem uma luz. A guerra um dia termina, então as coisas vão melhorar – reflete Maria Ângela Bulhões, psicóloga do Hospital Psiquiátrico São Pedro e psicanalista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa).
O tempo de qualidade dedicado aos filhos, em última instância, definirá o futuro do Brasil a longo prazo. Brincadeiras estimuladas pelos pais, como as criativas pinturas feitas por Anthônia, que abriu esta reportagem, ajudam a lidar com a complicada realidade e trilhar um caminho com luz no fim do túnel.
Como amenizar efeitos da pandemia em jovens
- Seja mais tolerante e flexibilize regras: vivemos um momento de exceção.
- É difícil evitar o maior uso da internet. Tente propor outros passatempos, em especial com brinquedos físicos.
- Promova o encontro virtual do seu filho com os amigos. A convivência importa.
- Se aumentou a frequência do xixi na cama, seja compreensível: a criança que não fala comunica o sofrimento pelo corpo. Xingar não resolve.
- Converse com seus filhos e tente tranquilizá-los. Esteja aberto ao diálogo, diga que está difícil para todos, mas a família está unida. Isso traz segurança.
- Com distanciamento, leve sua família para aproveitar o sol no parque/praça. Estimule a prática de esportes.
- Incentive a leitura, mas tendo consciência de que filhos valorizam a leitura se você também o faz.
- Busque passar um tempo de qualidade em família: cozinhe, veja um filme, brinque um jogo de tabuleiro.
- Ajude o adolescente a se focar em um dia de cada vez. Viver à espera de uma eventual vacina é sofrível. Melhor buscar um pequeno prazer diário que compense a angústia.
- A arte é uma forma de expressão, sobretudo para crianças que não dominam a fala. Estimule a pintura, a música, a brincadeira com a argila.
Fontes: pediatra José Paulo Ferreira e psicólogas Simone Bicca e Maria Ângela Bulhões