Frequentadora assídua dos populares talk shows da TV norte-americana e das páginas mais respeitadas do jornal The New York Times, a escritora Debora Spar equilibra a linguagem acessível a um público sedento por conselhos sobre como criar filhos conectados 24 horas às telas dos smartphones com o debate profundo com seus pares, acadêmicos de Harvard, preocupados com o impacto da tecnologia na sociedade e na evolução do ser humano. Seus livros O Negócio dos Bebês – Como o Dinheiro, a Ciência e a Política Comandam o Comércio da Concepção e Wonder Woman – Sex, Power, and the Quest for Perfection são best-sellers.
No primeiro, ela pesquisou o surgimento de um grande mercado da fertilidade in vitro. No segundo, debruçou-se sobre as exigências impostas às mulheres no século 21, na vida pessoal e profissional. No mais recente, Work, Mate, Marry, Love – How Machines Shape Out Human Destinity, a escritora de 57 anos enfoca questões de gênero e tecnologia, e a interação entre as mudanças tecnológicas e estruturas sociais. Crítica das redes sociais, Debora comenta, nesta entrevista, como a pandemia nos forçou a uma reflexão necessária e urgente sobre nossas relações com as plataformas digitais.
Em episódios históricos como a Primavera Árabe, as redes sociais desempenharam um papel importante e passaram a ser vistas como canais que possibilitaram a libertação de regimes ditatoriais no Oriente Médio. No entanto, escândalos como Cambridge Analytica e, mais recentemente, a disseminação de discursos de ódio e notícias falsas nas redes sociais mostraram o quão nocivas essas mesmas mídias podem ser. Descobrimos o outro lado da rede social?
Absolutamente. E a tragédia é que não previmos isso, nem fizemos nada para impedi-lo. Já em meados da década de 1990, muitas pessoas, eu entre elas, alertavam que uma internet sem regras quase certamente geraria o caos. Em particular, não ter nenhuma orientação para coisas cruciais como privacidade e direitos de propriedade significava que empresas iniciantes seriam capazes de acumular uma enorme quantidade de poder e de controlar a comunicação entre indivíduos em todo o mundo. Estamos vendo isso agora e, infelizmente, será muito difícil colocar esse gênio em particular de volta na garrafa.
Nas redes sociais falta clareza sobre o que é notícia, o que é opinião ou notícia falsa?
Sim. Como as redes sociais são tratadas nos Estados Unidos e em outros lugares como plataformas em vez de veículos de comunicação, elas não têm responsabilidade legal de filtrar ou selecionar o material que é postado. Portanto, há uma total falta de clareza, e de fato uma falta de clareza explícita, sobre o que constitui notícia versus opinião. As formas mais antigas de mídia, como os jornais, precisam diferenciar o que é notícia e o que é opinião. Mas como essas distinções não se aplicam ao ciberespaço, empresas como o Facebook não têm obrigação legal (na maioria dos países) de censurar até mesmo os exemplos mais flagrantes de notícias falsas.
Regulamentação é a única resposta. Pense nos carros: uma vez que se tornaram predominantes, os governos precisaram intervir para estabelecer regras de trânsito, questões como limites de velocidade e sinais de pare, que permitiram a todos dirigir com mais segurança.
Diante da falta de responsabilidade por parte do Facebook, Google e outras grandes empresas de tecnologia sobre o conteúdo que publicam, Estados Unidos e Europa têm buscado regulamentar a operação das plataformas. Este é o caminho?
Acredito que a regulamentação é a única resposta. Deixadas à própria sorte, as empresas privadas nunca estarão em posição de se autorregulamentar de forma a atender melhor os interesse da sociedade. As formas precisas de regulamentação podem e irão variar entre os países, mas mesmo diretrizes básicas ajudarão a fornecer formas mais claras e, em última análise, mais seguras de se fazer negócios. Pense em uma analogia com os automóveis: uma vez que eles se tornaram predominantes, os governos precisaram intervir para estabelecer “regras de trânsito”, questões como limites de velocidade e sinais de pare, que permitiram a todos dirigir com mais segurança.
Na política, observamos o uso de robôs para campanhas de difamação. Como tornar esse ambiente menos tóxico sem abrir mão da tecnologia?
Mais uma vez, é aqui que precisamos desenvolver “regras básicas”. Por exemplo, não precisamos banir as redes sociais nem mesmo proibir anúncios políticos nas redes sociais. Poderíamos apenas ter regras que exigissem que os anunciantes políticos fossem identificados como tal. Se um anúncio está sendo colocado por um bot estrangeiro, ele deve informar isso.
Alexa, Siri... Essas assistentes de voz muitas vezes são criticadas por perpetuar visões sexistas, machistas, racistas. Qual é o papel das plataformas diante dessas manifestações sociais?
Pessoalmente, não acredito que Alexa ou Siri sejam projetados para perpetuar o sexismo, o racismo ou qualquer outra coisa. São inovações tecnológicas destinadas a aumentar os lucros das empresas que as empregam, e isso pode ter consequências indesejáveis, infelizes. Assim que começarmos a ter uma noção maior de quais podem ser essas consequências (por exemplo, treinar nossos ouvidos para associar as vozes das mulheres com ajuda ou inteligência com certos sotaques), podemos e devemos projetar conscientemente essas tecnologias para serem mais neutras em termos de valor.
A senhora costuma afirmar que as as mudanças tecnológicas não estão restritas apenas às salas de reuniões e nas empresas. Elas também impulsionam nossos relacionamentos pessoais. Em algum momento, nos esquecemos disso? Acabamos olhando excessivamente para o impacto da tecnologia nos negócios e agora estamos pagando o preço por isso?
Em geral, acho que esquecemos as maneiras complexas pelas quais a mudança tecnológica afeta nossos relacionamentos pessoais e estruturas familiares. É por isso que escrevi este livro (Work, Mate, Marry, Love – How Machines Shape Our Human Destinity), para examinar esses links. Mas eu não concordaria necessariamente que estamos pagando o preço. Acho que é mais, que precisamos olhar para esses links, focar neles e, em seguida, decidir como queremos agir sobre as escolhas pessoais que agora enfrentamos como resultado da mudança tecnológica.
Acredito que formaremos ligações emocionais com seres robóticos. De certa forma, já temos: pense em como todos nós já dependemos de nossos smartphones, por exemplo. Não estou dizendo que substituiremos nossos amores humanos por amores mecânicos. Mas iremos interagir cada vez mais emocionalmente com as máquinas inteligentes que criamos juntos.
A senhora costuma escrever que as diferentes tecnologias (arado, carro, avião) causaram mudanças comportamentais. Mas agora parece que todos os nossos relacionamentos são alterados por máquinas, o que é um pouco assustador. Ao entrarmos em uma era de inteligência artificial e robôs, como nossos sentimentos e desejos mais profundos irão evoluir?
Bem, ainda não sabemos totalmente. Mas minha previsão é de que nossos sentimentos mais profundos permanecerão em grande parte inalterados: como espécie, parecemos programados para ansiar pelo amor e pela conexão. O que vai mudar é como esses desejos se manifestam. Acredito que formaremos ligações emocionais com seres robóticos. De certa forma, já temos: pense em como todos nós já dependemos de nossos smartphones, por exemplo. Pense em como já nos comunicamos com nossos entes queridos por meio de canais mediados por computador, como o Zoom. Pense, de forma mais mundana, em quantos de nós temos profundas conexões emocionais com nossos animais de estimação. Não estou dizendo que substituiremos nossos amores humanos por amores mecânicos. Mas iremos interagir cada vez mais emocionalmente com as máquinas inteligentes que criamos juntos.
No livro Work, Mate, Marry, Love – How Machines Shape Our Human Destinity, a senhora afirma que, no passado, os modos de produção predominantes produziram um mundo dominado por famílias heterossexuais, em sua maioria monogâmicas, com dois pais. “No futuro, porém, é quase certo que esses padrões serão remodelados, criando normas inteiramente novas para o sexo e o romance, e para a construção de famílias e a criação dos filhos. Evitando a euforia tecnológica e o alarmismo”. A senhora oferece visão ousada e inclusiva de como nossas vidas podem ser mudadas para melhor. Parece otimista com relação à tecnologia.
Estranhamente, sim. Acho que a história da tecnologia nos oferece duas lições abrangentes: primeiro, que não podemos reverter a história. Uma vez que criamos nossas máquinas, nós as usamos. Em segundo lugar, depois de um período inicial de euforia, caos e medo e depois de aprendermos a colocar as proteções apropriadas no lugar, aprenderemos a conviver com as máquinas que criamos. Acredito que a tecnologia continuará permitindo que as pessoas se apaixonem e formem famílias de maneiras novas e sem precedentes. Para ser claro, precisamos ter certeza de que essas tecnologias são usadas com segurança, que, por exemplo, protegemos a saúde das mulheres submetidas à fertilização in vitro ou garantimos os direitos daquelas que servem de mães de aluguel para outras pessoas. Precisamos, como eu disse antes, estabelecer regras básicas de trânsito e nos concentrarmos em garantir que as novas tecnologias não aprofundem as desigualdades que já assolam nossas sociedades. Mas, presumindo que façamos isso, me sinto otimista sobre a capacidade de nossa espécie de viver de forma mais justa e inclusiva no futuro.
A senhora disse que a invenção do arado levou ao início da monogamia e do casamento. No século 20, máquinas de lavar, automóveis e anticoncepcionais ajudaram na emancipação das mulheres do “culto da domesticidade”. Como a senhora avalia o feminismo hoje, 50 anos depois do início do movimento?
É uma questão complicada. A boa notícia é que as mulheres avançaram muito desde o advento do feminismo. Temos muito mais mulheres em posições de poder e várias gerações de mulheres que conseguiram combinar uma vida gratificante no trabalho com uma vida gratificante em casa. A má notícia, porém, é que as mulheres ainda estão muito sub-representadas nessas posições de poder e ainda lutam para conciliar as demandas conflitantes do local de trabalho e do lar. Elas ainda precisam lidar com o abuso e o assédio sexual e têm mais probabilidade do que os homens de viverem na pobreza.
Para as pessoas que cuidam de crianças durante essa pandemia, a culpa não é uma coisa boa. Ser pai é difícil em qualquer circunstância. É extremamente difícil agora. As telas em si não são más. Em tempos de pandemia, prefiro muito mais que um filho se conecte a outras pessoas online do que se isole.
A senhora geralmente pensa sobre o que acontecerá com o amor, o sexo e o romance à medida que nossos relacionamentos migram do mundo real para o virtual. O que acontecerá com nossas noções mais básicas de humanidade à medida em que enredarmos nossas vidas e emoções com as máquinas que criamos. Conversei recentemente com o historiador norte-americano Timothy Snyder e ele disse que a internet nos fez esquecer nossas habilidades humanas. A pandemia mostrou como somos vulneráveis como seres humanos?
A pandemia definitivamente nos lembrou de nossa fragilidade humana, bem como de nossa necessidade de permanecer conectado com aqueles que amamos. Ao mesmo tempo, porém, também nos lembrou de como já nos tornamos dependentes de nossos computadores e de nossas conexões com a internet. E para o bem e para o mal, nos obrigou a nos tornarmos radicalmente mais dependentes dessas tecnologias.
Frequentemente, ficamos preocupados com as desvantagens da tecnologia, como crianças passando muito tempo nas telas, fazendo com que os pais se sintam culpados. Como equilibrar a necessidade de algum controle, mas sem afastar os filhos da conexão com a tecnologia?
Em primeiro lugar, para as pessoas que cuidam de crianças durante essa pandemia, a culpa não é uma coisa boa. Ser pai é difícil em qualquer circunstância. É extremamente difícil agora. Portanto, os pais precisam abolir o fardo adicional da culpa. Em segundo lugar, as telas em si não são más. E os pais terão um controle limitado sobre o que seus filhos assistem e fazem online. O mais importante é ajudar as crianças a se envolverem com conteúdo que as ajudará a aprender e ter sucesso. Usar o Zoom para se comunicar com a família e amigos é quase sempre uma coisa boa. Assim como descobrir novos hobbies ou aprender novas habilidades. Em tempos de pandemia, prefiro muito mais que um filho se conecte a outras pessoas online do que se isole. É apenas uma luta, e presumivelmente sempre será uma luta, para manter as crianças longe do conteúdo ou de pessoas que poderiam prejudicá-las.