Foi em uma cooperativa de reciclagem que o catador Alexandro Cardoso, 42 anos, viveu uma etapa significativa da sua vida: a apresentação do trabalho de conclusão de curso em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), defendido em Porto Alegre nesta terça-feira (1°), Dia Internacional dos Catadores. Ele foi aprovado com conceito A.
Além da data, tudo foi organizado por Alex para ressaltar a importância da função de catador. A apresentação ocorreu na sede da Cooperativa dos Catadores do Loteamento Cavalhada, na Zona Sul, evento transmitido em redes sociais e assistido de perto por cerca de 80 colegas que, assim como ele, sobrevivem retirando materiais das ruas para encaminhar à reciclagem.
— Os colegas na linha de frente. Esse é o público principal da apresentação — disse ele, horas antes de defender seu TCC.
O tema do trabalho, como não poderia deixar de ser, é a função social do catador, mas não só: também destaca como é ser um pesquisador que fala com intimidade sobre o objeto de estudo, que se coloca como sujeito na pesquisa, sem pretensão alguma de imparcialidade, como defendem algumas teorias.
— Sempre é o sujeito de fora que vem pesquisar sobre o pobre. O pobre não está na universidade. A academia sempre discute isso de não se envolver com o objeto, a importância do afastamento do objeto. No meu caso, como catador, a minha ligação é umbilical com meu campo de estudo. Meus colegas, meus vizinhos, meus familiares são catadores. Não tem como me afastar do objeto — afirma Alexandro.
Criado entre catadores da Vila Cai Cai, na Capital, Alex é um dos fundadores do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR). Tornou-se porta-voz nacional da categoria, realizando diversas palestras pelo mundo. Virou autor de livro no ano passado, quando retratou sua luta para resistir às adversidades e investir nos estudos na autobiografia Do Lixo a Bixo: A Cultura dos Estudos e o Tripé de Sustentação da Vida. Diversos momentos de sua vida foram contados em reportagem de GZH.
Algumas dificuldades se apresentaram logo que iniciou a graduação na UFRGS, em 2018. Como havia parado de estudar na 5ª série e, num ímpeto de se aprimorar, completou os níveis que faltavam fazendo a Educação de Jovens e Adultos (EJA), sua habilidade com a escrita não era formal, não se encaixava no modelo exigido pela universidade. Mas conseguiu dominar a técnica em pouco tempo.
— O meu português não era o português correto da academia. Então, sofri muito no início da graduação, levando nota C porque não sabia escrever trabalhos. No segundo semestre, me habituei, e passei a levar nota A. Tenho 82% de nota A nas minhas cadeiras — garante ele.
Entre as lições aprendidas nas Ciências Sociais, uma das que mais lhe marcou foi o conceito de "habitus" do sociólogo francês Pierre Bourdieu, um dos principais filósofos do século 20, com grande contribuição para a sociologia. A ideia, basicamente, é a de que existe um conjunto de pensamentos, gostos, formas de agir, que são repassados por família, escola e comunidade, e que orientam um indivíduo a fazer suas escolhas.
Alex explica:
— É como a gente se torna o que é. Por exemplo: eu vim de família de catador, vivo na vila que é de catador, então, o que eu vou ser, piloto de Fórmula 1? Não. Na vila, as pessoas acabam abandonando a escola desde cedo, não entram na universidade. Acha que o Alex vai fazer isso? O Bourdieu traz a ideia do hábito — diz.
Ele, no entanto, contornou a teoria de Bourdieu. Não só ingressou na universidade, saiu dela com diploma de cientista social como se prepara para uma nova fase na academia: o mestrado em Antropologia Social também pela UFRGS, onde dará sequência aos estudos sobre os catadores, processo que deve iniciar no próximo mês:
— Me sinto numa crescente. Tenho muito o que viver, muito o que aprender, muito a compartilhar. Essa força não é sozinha, tive o apoio de várias pessoas. Me sinto na obrigação de continuar a caminhar.
Com a divulgação da importância do serviço prestado pelos catadores, o que Alex mais deseja é que a sociedade entenda a diferença da coleta exercida por uma pessoa que puxa o carrinho pelas ruas. É um roteiro, diz ele, marcado pela troca com a comunidade, algo que a tecnologia não supera.
— O catador passa tranquilo, puxando a conversa com as pessoas, explicando como separar um lixo do outro, e isso faz com que a reciclagem seja mais eficiente e a população consiga enxergar seu benefício. As pessoas ficam felizes porque entendem que estão fazendo uma boa ação. Esse vínculo eu chamo de cultura social da reciclagem — finaliza.