Existe uma brincadeira que, mesmo irreal na prática, ajuda a mensurar o território de parte dos balneários que compõem a costa gaúcha: “não vai de carro, pois, se frear, não chega e, se acelerar, passa”. A piada é repetida pelos veranistas que, desde gerações, adotaram praias sem condomínios verticais, shoppings, lojas e até mesmo restaurantes – quem não se organizar precisa mudar a receita do almoço, pois o único mercado fecha ao meio-dia e reabre no meio da tarde.
A reportagem de GZH percorreu a beira-mar em Capão da Canoa, Arroio do Sal e Torres. Mesmo próximas, as áreas visitadas não têm nada da badalação dos municípios aos quais pertencem. Quem as frequenta, garante que a paz vale mais que o fervo dos agitados centrinhos do Litoral Norte. Um dado comprova essa percepção: ao ser questionado, nenhum entrevistado aceitou a hipótese de negociar seu imóvel.
Nos 60 quilômetros de orla, há 118 balneários, com suas histórias peculiares. Antes da pandemia naturalizar o distanciamento, os moradores já tinham optado por não se aglomerar. Somente um ponto do decreto informal para conter o coronavírus é até hoje polêmico nas prainhas: pode continuar jogando pife ou o álcool em gel vai marcar as cartas?
Arroio Seco (Arroio do Sal)
A fila arrastada de chinelos de dedo se forma na rua de paralelepípedos. O destino de quem vive ou veraneia no Arroio Seco, um dos 83 balneários de Arroio do Sal, é um só: o Mercado e Açougue JB, conhecido pelo apelido do seu dono, “Pombinha”. Há 30 anos, o mercadinho é o único da praia.
— Aqui não tinha ninguém na volta, agora tá cheio de casa — relembra Pombinha, ou como é menos conhecido, José Luís Schardosin, 78 anos.
A corrida dos clientes se justifica, pois a venda fecha ao meio-dia e reabre às 15h. Cartão de crédito e débito já somam 90% dos pagamentos, mas um fichário ao lado do caixa entrega uma particularidade: o fiado pelo caderninho segue sendo uma escolha para cerca de 500 cadastrados.
— Tem uns caloteiros, mas é pouquinho. Não vai aparecer o nome desse aqui na foto, né? — preocupa-se Evanir Jacob, 51 anos, filho do Pombinha.
Há apenas outra opção para montar a mesa de café, almoço ou janta na praia: uma padaria/sorveteria que também oferece o item mais cobiçado, a rosca de polvilho azedo, assada em forno de barro sobre uma folha de bananeira.
Pombinha mora no andar de cima do seu comércio e, como 100% dos entrevistados nos pequenos balneários, diz não pensar em se mudar:
— Não troco por nada nesse mundo.
Na mesma família há sete décadas, uma construção se mantém com as madeiras originais. Os moradores relatam que é a mais antiga. Chamam a atenção as largas tábuas de louro no assoalho e na parede, “tudo serrado no braço”, afirmam os proprietários.
A agricultora Geneci Bock Leffa, 55 anos, vive até hoje no que foi construído pelos avós.
— O pessoal lavava roupas no antigo arroio, que agora é canalizado. A mãe assava rosca pra vender, e aqui também foi o primeiro bolicho da praia – relembra Geneci, ao lado da mãe, Maria Joaquina Schutz Bock, 86 anos.
A faixa de areia do Arroio Seco, mesmo em finais de semana, não recebe mais do que uma dezena de guarda-sóis. Algumas casas reuniam amigos para jogar pife, pontinho e solado. Os carteados, no entanto, ficaram reservados aos núcleos familiares desde a temporada passada.
Gramado de futebol sete e uma praça com brinquedos infantis dividem as atenções com uma santinha, protegida por um invólucro de vidro, no laguinho de água verde. O restaurante Choupana já não serve mais qualquer refeição: sem clientes e degradado pela maresia, foi desmontado e substituído, sem o mesmo glamour, por um food truck perto da faixa de areia.
— Não precisa de mais nada, aqui é uma maravilha — garante a advogada Maura Borges, 57 anos, de Santana do Livramento.
Praia Azul (Arroio do Sal)
Por um acesso de estrada de terra avermelhada e muito verde no entorno, Arroio do Sal oferece a Praia Azul. A recepção do balneário é feita por um casarão amarelo, telhas de barro e janelas em tons celestes.
A mansão, dos anos 1950, é adotada também como rodoviária não oficial para embarque e desembarque nos ônibus pinga-pinga que cruzam a Interpraias. Já foi hospedaria de religiosos e um hotel. Atualmente, é mantida no local a Pousada Praia Azul, com 15 quartos para locação na ala de fundos – a frente passa por reformas, e está fechada por tempo indeterminado. Há duas décadas, é mantida por Ana Maria Paulino, 58 anos, e suas duas filhas.
— Dizem que os seminaristas dormiam no sótão. Tá um pouco bagunçado, não repara — afirma a proprietária, mostrando a ampla peça decorada com cortinas, bandeiras e uma pequena biblioteca.
A gente vivia em Novo Hamburgo, tinha bar. Era uma loucura. (...) Aqui pode caminhar tranquilo, ir à praia de noite, sem medo.
ANA MARIA PAULINO,
proprietária da Pousada Praia Azul
As ruas da Praia Azul são floridas, com árvores plantadas no canteiro central e coqueiros invadindo a calçada. Historicamente ocupada por descendentes de alemães e italianos, recebe, como boa parte das prainhas do município, imagens religiosas nas vias a caminho do mar. Tem o clima de cidadezinha do interior, muito distante das experiências que viveu outrora a dona da pousada.
— A gente vivia em Novo Hamburgo, tinha bar. Era uma loucura, demorei pra me acostumar. Agora é muito diferente. Aqui pode caminhar tranquilo, ir à praia de noite, sem medo. Depois que desacelera, a gente aprende a gostar — complementa Ana Maria.
Riviera (Torres)
Vinte metros separam a faixa de areia e o castelo da Praia Riviera. De alvenaria, mesclando tijolos maciços e outros rebocados de seis furos, o palacete foi erguido por Hamid Iskandar em 1954. O libanês chegou à região inóspita de Torres, se encantou com a tranquilidade e adquiriu a área, delimitada hoje em 58 hectares.
Sessenta e oito anos depois, a vizinhança mudou, exibe um condomínio de belos e modernos casarões, mas a beira-mar segue pouco povoada, para deleite de quem gosta de paz. Mesmo em um sábado de céu claro de janeiro, poucas cadeiras de praia ocupavam o espaço do pequeno balneário, um dos 23 do município.
No meio do amplo terreno, já loteado, segue em pé o forte libanês, ainda de posse da família que o construiu. “Ainda”, pois o assédio tem sido intenso nos últimos dois anos, segundo o empresário José Antônio Souza, o Zezinho, casado com Evelyn Iskandar, herdeira da fortaleza.
— Muita gente tá vindo morar aqui. Na pandemia, tentaram mais de uma vez comprar o castelo, mas a gente quer restaurar e fazer um hotel — explica.
Quando vivo, o sogro de Zezinho contava histórias da época que chegou até o deserto que lhe serviria de paraíso. Ao lado do oceano, em uma carroça, fazia a travessia até Torres, um trajeto de quase 15 quilômetros.
Com 60 metros de frente e 40 metros de fundo, o lote que mantém a fortificação já foi casa de shows e, por um período, sediou festas rave durante dias a fio.
— Quantas festas a fantasia já fui aí — diz, saudosista, o comerciante Deives Justo, 31 anos.
Itapeva Sul (Torres)
Pela Estrada do Mar, os visitantes curiosos pela história medieval da Riviera se deparam com a vizinha e aconchegante Itapeva Sul. Ruas asfaltadas, limpas e organizadas levam até a extensa praia. Carros são permitidos na faixa de areia.
A história de uma das primeiras famílias do balneário está no galpão de costaneiras do Restaurante Balanço do Mar – outra atração é o fogão de rabo, construído todo em tijolos e com uma chapa de ferro acima do braseiro. Adilso da Silveira, 55 anos, e a esposa, Sofia Isabel Monteiro de Mattos, 56, vivem em uma casa junto ao estabelecimento da Avenida Beira Mar.
— Não dá pra abandonar, né filho — se adianta e explica Isabel.
Fundado há 30 anos, o local resiste à ação da maresia e às crises financeiras. Adilso garante não lutar apenas para manter a atividade: batalha pela praia onde cresceu.
“Cresci e criei meus filhos aqui. Fui a Torres só pra nascer, na barriga da minha mãe, de carroça.
ADILSO DA SILVEIRA,
morador de Itapeva Sul
— De manhã estou na areia com sacola, recolhendo lixo. Não quero que turista pense que o gaúcho é relaxado. Cresci e criei meus filhos aqui. Fui a Torres só pra nascer, na barriga da minha mãe, de carroça — recorda, orgulhoso.
Um dos filhos é guarda-vidas. O outro, José Henrique de Mattos da Silveira, 19 anos, seguiu a profissão dos pais. Se define como “faz-tudo” no restaurante, e engrossa o coro em defesa do pequeno balneário.
— Fiquei um tempo em Torres, com a minha vó, mas logo já voltei pra cá, porque senti falta — admite.
Dividir o tempo entre a Região Metropolitana e esse cantinho sossegado do litoral foi a escolha do casal de professores Ivan Barbosa, 53 anos e Lilian Castilhos, 46. Há mais de uma década eles alugam o mesmo apartamento em Itapeva Sul.
— Tem tranquilidade, pouca gente, infraestrutura boa e peixe pra eu pescar — lista o docente.
Praia Guarani (Capão da Canoa)
Dez minutos de carro pela Avenida Paraguassu – fora do horário de pico na movimentada Capão da Canoa – são necessários para chegar a Guarani, uma das 12 praias do município listadas pela prefeitura.
— Mercado só tem lá depois da faixa — alerta, pra início de conversa, Valmir Santos Moraes, 56 anos.
O balneário de poucas ruas tem dunas de acesso à área de banho, casinhas estilo cabana na via tapada pelos montes de areia e barracas pouco frequentadas junto ao mar. A procura pelo sossego a quatro quilômetros dos bares de Capão fica evidente quando o olhar se estende a um novo quarteirão: em série, casas geminadas têm suas obras adiantadas.
— Cresci aqui, desde criança. Pelo trabalho, me mudei pra Capão da Canoa, mas, como adoro, venho visitar. Meus filhos gostam, tem natureza, e essas dunas... A coisa mais linda do mundo! Eu não sei onde mais tem dunas assim — complementa o ex-morador, hoje visitante.
Sou da época que não tinha quase nada. (...) Agora cresceu, tem muita casa nova sendo construída, e tá tudo muito caro.
VALMIR MORAES,
ex-morador de Praia Guarani
Moraes trabalha com pavimentação. Assentava pedras em uma calçada recém-planificada enquanto relembrava o início da ocupação da Praia Guarani. Apontando para onde vivem os mais antigos – muitos amigos seus de infância –, logo estendeu o braço em outro sentido, até o ponto dos imóveis de parede compartilhada.
— Eu sou da época que não tinha quase nada. A gente usava bombinha d’água manual para encher a caixa. Agora cresceu, tem muita casa nova sendo construída, e tá tudo muito mais caro — avalia.
Na via principal de acesso à areia, um amplo imóvel de alvenaria contrasta com uma residência de tábuas irregulares, mas nem por isso sem encanto. O terreno tem vista do oceano preservada por um amplo pátio de grama aparada. Nenhuma construção atrapalha a paisagem.
A casa de madeira é da bancária Véra Cappua, 55 anos.
— Nosso terreno hoje é disputado, querem fazer camping, estacionamento, restaurante... Mas a gente não vai vender — avisa, de antemão.
A moradora relembra a história intrigante de um vizinho aviador.
— Ele vinha de avião pra praia. Pousava aqui, onde agora é a rua. Aí, um dia o jornal fez uma reportagem e proibiram ele de voar. Volta aqui outro dia que a família te conta — diz.
O convite, infelizmente, não decolou.
Praia Conceição (Capão da Canoa)
Esquinas desencontradas, placas coloridas e um apelido: Texas Beach. A Praia Conceição, balneário junto a Arroio Teixeira, nos confins de Capão da Canoa, surpreende pelos detalhes, como a sombra na faixa de areia, gerada por plantações cultivadas acerca do mar. É um dos melhores refúgios para desligar corpo e mente, garante o técnico de manutenção Ivan José Flores, 59 anos.
— Pra mim, é fortuna. Não troco. No máximo, vou passar um dia em outra maior. Se eu pensar em vender essa cabana, apanho da mulher e do filho – brinca, enquanto a mulher, a assistente comercial Eliane, sinaliza que sim com a cabeça.
Morador de São Leopoldo, no Vale do Sinos, o casal adquiriu a cabana no início dos anos 2000. Com 80 metros quadrados, três quartos, pátio e garagem, é a típica casa de praia, decorada com evidente carinho.
— O próprio veranista que vem, logo identifica que é uma praia família e respeita. Não tem aquela coisa de som alto, bagunça, sabe? - diz Eliane, 54 anos. No meio desse sossego, a mais agitada é Molly, a cachorrinha shitzu do casal, com dois anos de idade.
Se eu pensar em vender essa cabana, apanho da mulher e do filho.
IVAN JOSÉ FLORES,
proprietário de uma casa em Praia Conceição
Michele de Matos, 34 anos, vive na Praia Conceição desde os cinco. Atualmente, toca com o marido o Mercado Matos, iniciado por seus pais.
— Pra quem não gosta de agito é ótimo. Se precisar de algo, dá uma corridinha em Capão, ou encontra até em Arroio Teixeira, que tem muita coisa — afirma.
O marido dela, Diego Tavares de Brito, 39, não precisou de muito para se mudar junto à família da esposa.
— Todo mundo se conhece, todo mundo se ajuda. Já morei em Torres, mas prefiro isso aqui. É a melhor praia — garante, comprando briga com todos que contaram suas histórias nessa reportagem.