Novamente, em função da pandemia de coronavírus, as festas de Carnaval foram impactadas. Na quarta-feira (23), em reunião da prefeitura com representantes dos blocos carnavalescos, foi decidido que Porto Alegre não terá Carnaval de rua. Ainda há expectativa é de que seja marcada uma nova data, com outro formato. Já os desfiles de Carnaval foram adiados e serão realizados em 6, 7 e 8 de maio, no Complexo Cultural do Porto Seco. A festa contará com as 22 escolas de samba e com a tribo Os Comanches.
Para levantar o astral, GZH conversou com carnavalescos da Capital, que relembraram histórias e momentos marcantes de folias de outros anos. Além das boas memórias, eles contaram os planos para este ano.
Guiado com leveza pela Avenida
Uma passagem pelo sambódromo com leveza e cheia de emoção foi um dos momentos recordados por Jorge Fraga Dornelles, conhecido como Tio Jorge da Imperatriz, 68 anos. Ele é destaque pelas fantasias produzidas para o desfile. Além das peças preparadas para o próprio uso, Tio Jorge também se dedica aos figurinos vestidos por pessoas mais chegadas. Tem como seu mentor o carnavalesco Alvino Machado, professor e figurinista.
Em 2007, pronto para desfilar com a Imperatriz Dona Leopoldina, ele foi convidado para fazer parte da abertura do sambódromo do Complexo do Porto Seco, junto com pais e mães de santo.
– Me convidaram para fazer a abertura e, como eu tinha uma fantasia de Oxalá, pude participar. Quando a Avenida iria começar a ser lavada com água perfumada, cheguei e havia uma onda branca de pais e mães de santo. Eu estava com a minha fantasia, e as pessoas perguntavam: “Quem é, é pai de santo?”. Fui falar com o encarregado que tinha me convidado. Nesta hora, ele disse que eu iria iniciar a abertura porque estava caracterizado como Oxalá. Eu disse que não sabia a dança de Oxalá. E ele rebateu: “Não tem preocupa, na hora tu vais saber” – detalha Tio Jorge.
A apreensão que antecedeu o momento foi deixada de lado assim que a música começou.
– Entrei, dancei e passei pelo sambódromo. Saí leve. Todos ficaram encantados com a forma com que dancei e me diziam que eu sabia tudo do orixá. Mas eu falava que tinha sido carregado, guiado, enquanto passava –conta.
Envolvido há mais de 40 anos com o Carnaval, Tio Jorge relata que viveu o surgimento da Imperatriz na praça do bairro Jardim Dona Leopoldina, em meados de 1980. Em relação aos figurinos, Jorge se inspira no tema da escola para montar.
Atualmente, ele está produzindo uma segunda versão da fantasia de Oxalá, repaginando o figurino ainda sem certeza se entrará na Avenida, em maio, com a peça. Neste feriado, ele segue na montagem das fantasias de luxo no ateliê de sua casa.
– Tudo é gostoso quando tu se dedica. E todas as minhas fantasias ficaram marcadas. Todas têm uma história, todas são histórias da minha vida – finaliza.
Atraso dos chapéus entrou para história
A falta de um acessório da fantasia de uma bateria inteira causou um reboliço, em meados da década de 1980, e o momento se tornou inesquecível para Nilton Pereira, conhecido como Mestre Nilton, 70 anos, ex-presidente da escola Bambas da Orgia e ex-ensaiador de bateria. De volta à época, Nilton conta que os ensaios dos Bambas ocorriam na Rua Doutor Alcides Cruz e não na Voluntários da Pátria. Toda a organização era mobilizada para o endereço.
– O pessoal da bateria era formado por cerca de 250 ritmistas. Era um exército. Para dar tudo certo no desfile, a entrega das fantasias era feita um dia antes. Por segurança, uma das peças ficava trancada, tipo o chapéu. Como o pessoal ia direto para a Avenida, a gente tinha essa estratégia de ter a peça para entregar na concentração antes – detalha Nilton, que à época era ensaiador de bateria.
O tempo foi passando enquanto o grupo se concentrava na quadra, e nada do chapéu chegar para a distribuição. A hora de ir para a Avenida se aproximava, e Nilton não teve como adiar o deslocamento – todas as estratégias já haviam sido aplicadas, como a entrega do lanche. Segundo ele, a folia era na Avenida Perimetral – a Loureiro da Silva:
– Ficamos aguardando, todos irritados, nervosos. Por volta da uma da madrugada, chegaram os chapéus. Eles tinham uma pintura com tinta preta que não tinha secado e, além do mais, tinham que ser montados, mas como que vai montar 250 chapéus em pouco tempo? Quem sabia, montava em apenas um minuto, mas muitos não tinham o jeito. Chegamos a entregar alguns e desistimos.
Entre sair para a Avenida com alguns chapéus ou com nenhum, Nilton se viu em uma situação tensa:
– Enlouqueci e falei: suspende esse chapéu. Tira esse negócio! O grupo se revoltou, mas eu tinha que tomar uma decisão de liderança. Tentei agrupar todo mundo, subi em um banquinho, comecei a fazer um discurso!
O ensaiador com cautela explicou para a bateria que o grupo tinha cumprido com o combinado e que tudo estava bem ensaiado, em boas condições de entrar na Avenida, mesmo com a falta da peça:
– Nosso trabalho estava feito. Falei: “Eu vou, quem quiser ir comigo vem”. Desci do banquinho e fui para o lugar da bateria. Não tinha coragem de olhar pra trás e ver se não vinham junto. Em questão de dois minutos, o que durou uma eternidade, eu virei e vi que a bateria começou a levantar os instrumentos. Eles entraram no meu discurso, a gente montou tudo e simbora!
O atraso da confecção que fez esse momento ser marcante é relembrado até hoje, principalmente por quem compõe a Velha Guarda Musical de Bambas da Orgia, fundada pelo Mestre Nilton. Naquele Carnaval, Bambas foi campeã – em uma sequência de quatro anos vencedora. A bateria foi penalizada no quesito fantasia, mas não foi afetada no somatório.
Para este Carnaval, Nilton iria assistir aos desfiles no Rio, que também foram adiados. Então, ele e a família curtirão o momento em casa, com boas conversas sobre a folia.
Em 2020, a apuração dos desfiles do Carnaval da Capital consagrou a Bambas da Orgia. O título, que não pode ser comemorado com festas devido à entrada do coronavírus no país, marcou a passagem de Nilton como presidente.
– Lá em 1979, fui chamado para quebrar o galho e comecei a trajetória no Bambas, fui diretor de harmonia musical, fiz parte da administração, fui presidente, que aconteceu em 2020, aquele menino da bateria. Foi um trajetória bacana – reflete com boas recordações.
Frida Kahlo uniu professoras
A professora aposentada de Língua Portuguesa e Literatura Nara Odi Castilhos, 65 anos, tem uma bagagem de histórias inesquecíveis vividas com a escola Imperadores do Samba. Carnavalesca desde sempre, ela levava o assunto Carnaval para os colegas de trabalho.
– Eles me perguntavam sobre e eu dizia que sempre desfilei. Havia um preconceito – destaca a professora, que à época trabalhava em uma escola de freiras.
Em 2004, em uma conversa com outros professores, surgiu a ideia, a partir da docente de Artes, de reproduzir o Baile de Veneza com roupas e itens da época.
– E eu dei uma ideia também. Se, no final das apresentações, entrasse a bateria de uma escola de samba? Vamos ensinar como era o Carnaval de Veneza e encerramos mostrando como é o Carnaval no Brasil. Eles aceitaram a ideia – conta.
O projeto ocorreu conforme foi planejado, e a bateria com o mestre-sala e a porta-bandeira entraram na escola.
– Foi lindo ver todos dançando naquele dia. Eu continuei falando na questão da escola de samba. Até chegar em 2017, quando o tema era “Sou Resistência e Não me Kahlo: Frida, Sou México em Flores, Cores e Amores”. Quando eu falei isso na sala, as professoras se entusiasmaram e se envolveram conversando sobre isso. Aí, pensei que era o momento de eu levar minhas colegas para a escola de samba – recorda Nara, ressaltando o enredo desenvolvido por Fábio Castilhos e Edy Dutra.
No ensaio, as professoras foram contagiadas pela energia. Os planos de Nara não pararam por aí:
– Pensei na ideia de montarmos um grupo para desfilarmos no Porto Seco. Elas compraram a ideia e foram. Na hora do desfile, estavam soltas na Avenida. E, quando terminou, queriam continuar dançando e falavam: “É muito bom tudo isso, é muita energia”. Me marcou pelo tema, pela força, por conseguir levar 13 professoras para a Avenida. De conseguir, através delas, disseminar que Carnaval é uma energia muito boa.
O livro sobre a história da vida de Frida Kahlo fez parte do figurino das professoras.
– Como carnavalescos, o nosso principal papel é desmitificar o Carnaval, que também é lugar de ensino, de família e de cultura. Elas super toparam e gostaram muito. E este foi o carnaval da minha vida!
Neste ano, a professora se prepara para o desfile em maio, mesmo em meio a um cenário nem tão animado:
– Não podemos deixar o Carnaval de Porto Alegre morrer.
Carnaval gaúcho sendo representado
Carnavalesca de carteirinha e madrinha da bateria da escola de samba Estado Maior da Restinga, a empresária Viviane Rodrigues, 45 anos, tem diversos momentos especiais vividos no Carnaval. E não é à toa para alguém que conquistou o título de Rainha do Carnaval de Porto Alegre aos 16 anos.
Entre tantos, Viviane relembra de um momento em que representou o Rio Grande do Sul. Em 2012, a gaúcha brilhou à frente da bateria da Acadêmicos do Tatuapé, escola de São Paulo, e em 2013, participou do concurso Musa do Carnaval, quadro do Caldeirão do Huck. Ficou entre as quatro finalistas.
– Quando eu recebi a oportunidade de desfilar no Carnaval paulista e depois no Musa do Carnaval, mesmo que com a Acadêmicos do Tatuapé, me senti representando o Estado e percebi que o público também se sentiu muito representado por mim. Quando eu cheguei em Porto Alegre, foi como se fosse a campeã – recorda.
À época, Viviane se sentiu grata por levar a bandeira do RS e por ter representado o Carnaval gaúcho ao disputar com grandes passistas.
Ainda em 2013, quando Viviane desfilou em Porto Alegre, ocorreu uma aglomeração de pessoas a sua volta para fotos e abraços.
– Tiveram que colocar alguns seguranças porque a escola estava quase entrando. Mas, deu tudo certo e eu desfilei. O cortejo foi muito legal. É uma das situações que eu nunca vou esquecer. Fui recebida com muito carinho na Avenida – detalha.
De acordo com a musa, estar à frente da bateria é um papel de responsabilidade e muito valor e, após anos cumprindo a função, ela já começa a enxergar o encerramento:
– Eu digo que minha caminhada já está chegando ao fim, mas vou querer deixar um legado para outras meninas e uma boa recordação como madrinha. O Carnaval educa, transforma, dá profissão e salva vidas.
Neste feriado, Viviane conta que estará no Litoral para o descanso em família:
– Para nós, carnavalescos, parece que tem um vazio. Não é normal ir pra praia nesta época. Mas lá, vamos relembrar pela internet os antigos Carnavais e não deixar a folia do Momo cair até chegar em maio.