Para estudar o cultivo da erva-mate, a fim de tornar o chimarrão uma bebida mundial, o francês Aimé Bonpland (1773-1858) instalou-se em Santa Ana, antiga redução jesuítica da província de Misiones, na Argentina. Seu sossego não durou muito. Em uma noite de inverno de 1821, 400 soldados paraguaios invadiram a estância e o capturaram. Foi levado para outra margem do Rio Paraná, na aldeia de Santa Maria de Fé, em um sequestro que durou mais de nove anos.
O botânico foi preso pelo ditador José Gaspar Rodríguez de Francia, o Supremo, que governou o Paraguai de 1814 a 1840. Ele tratava Bonpland como um espião. Desconfiava que o médico agia como colaborador de Simon Bolívar, do qual temia uma invasão vinda da Bolívia. Além disso, a França não havia reconhecido a independência do Paraguai, motivo de animosidade do ditador com os franceses da região. Para piorar o quadro, o Supremo queria ter exclusividade sobre o comércio da erva-mate no mundo, encarando com maus olhos os experimentos do botânico na Argentina.
Durante a prisão, Bonpland circulava livremente por Santa Maria, mas não podia deixar a cidade. Ali, exerceu a medicina e se tornou um habitante estimado. Autoridades de diferentes países intercederam pela soltura, sem sucesso. Foi só em 1831 que o francês foi libertado. Contava então 58 anos, uma idade adiantada para a época. Mas, naquele momento, ele recém iniciava uma nova vida – ainda casaria, teria três filhos e batalharia pelo cultivo da erva-mate em mais um país, o Brasil.
Austeridade em São Borja
São Borja recebeu Bonpland pouco tempo após sua libertação do Paraguai. O botânico permaneceu lá por mais de 20 anos, até junho de 1853, quando decidiu morar em na província argentina de Corrientes, que visitava com frequência.
A cidade gaúcha era ideal. Localizada em região missioneira, São Borja tinha vestígios do cultivo da erva-mate pelos jesuítas, porém estava longe o suficiente do Paraguai para não despertar a atenção de Francia – o ditador monitorava os passos de Bonpland. Ali, por conta da proximidade do Rio Uruguai, poderia visitar com facilidade a Argentina, onde criava alianças para seus empreendimentos agrários, e conseguiria escapar com rapidez se as tropas de Francia se aproximassem.
Apesar das duas décadas na cidade gaúcha, onde nasceram dois de seus três filhos, Bonpland é pouco lembrado na região. O francês criava gado em uma propriedade rural, mas os relatos também dizem que possuía casa no centro da cidade, atendia como médico e preparava remédios em uma pequena farmácia. Austero, vivia em uma casa de chão batido, andava de pés descalços a maior parte do tempo e costumava ser tomado pelos visitantes como um criado. Não parecia se importar: negou convites para voltar à Europa, onde desfrutaria com tranquilidade da pensão que ganhava do governo francês. Apesar de abrir mão do conforto material, jamais deixou de cultivar delicados jardins de rosas por onde morou, remetendo ao cuidado que tinha com as flores em Malmaison. Por conta dessas singularidades, era conhecido na região como “Gringo Loco”.
O francês dá nome a uma rua de São Borja, mas não há registros precisos sobre onde morou, tampouco há qualquer marco de sua época. Por outro lado, desperta um interesse crescente de pesquisadores brasileiros e estrangeiros.
Bonpland teve uma importância espantosa para a disseminação da história natural no Cone Sul. Criou e ajudou a consolidar instituições, foi um sujeito dedicadíssimo. Além disso, recuperou as técnicas de cultivo de erva-mate dos jesuítas.
LUIZ ANTÔNIO DE ASSIS BRASIL
Escritor que se inspirou em Bonpland para escrever o romance "Figura da Sombra"
— É bem comum que gente de outros Estados, da Argentina e do Paraguai venham aqui em busca de informação. São Borja permanece muito focada em Getúlio Vargas e João Goulart. Mas a história da cidade tem muitos outros personagens que merecem atenção — diz Clóvis Benevenuto, responsável pelo acervo histórico do município.
Além da Rua Aimé Bonpland, São Borja conta com a placa em homenagem ao explorador francês no Museu Ergológico, erguida pelos Cavaleiros Farroupilhas. São homenagens tímidas se comparadas a recebidas em outros contexto: hoje, Bonpland é nome de uma cratera na Lua, de um asteroide, de um pico na Nova Zelândia, de uma rua em Buenos Aires, de um rio na Patagônia e de um liceu na França.
Bonpland também virou o nome da cidade argentina que cresceu sobre o lugar em que o naturalista francês viveu seus últimos anos. Ainda na temporada são-borjense, o médico se casou com Victoriana Cristaldo, filha de um fazendeiro correntino. Com ela, teve os filhos Carmen (1843), Amado (1845) e Anastácio (1847). Em 1853, a família foi viver em um longa extensão de campos doados pelo governo de Corrientes.
Na Argentina, Bonpland estabeleceu alianças com diferentes políticos para a expansão comercial da erva-mate. A estratégia era dominar inicialmente os mercados de Buenos Aires e Montevidéu, para depois avançar sobre outras fronteiras. O francês desenvolveu técnicas avançadas de cultivo e armazenamento, possibilitando colheitas periódicas e regulares, alinhadas com o modo de produção capitalista. Mas o Estado não garantiu o básico – para desespero de Bonpland, as fronteiras desguarnecidas do país deixavam passar o produto contrabandeado de ervais selvagens do Paraguai e do Brasil, explorados de modo extrativo e predatório.
O médico morreu em 1858, cinco anos após se instalar em Corrientes. É naquela região que permaneceram seus descendentes, o que colabora para que a memória de Bonpland seja mais preservada no país vizinho.
Logo na entrada da cidade argentina, que conta com pouco mais de mil habitantes, há um painel grafitado com a imagem de Bonpland tomando mate. Um pouco mais adiante, há um busto do francês, além de outras referências espalhadas pelo pequeno bairro central.
Um dos principais incentivadores do resgate histórico da cidade é o professor Jose Lezcano. Em dias de calor, tira as crianças da sala de aula e as leva para tomar tererê em alguma sombra próxima do painel colorido, onde conversam sobre o francês e outras personalidades históricas.
— É preciso compreender por que nossa cidade tem esse nome, com objetivo de entender nossa própria história. Para isso, estudamos a figura universal de Aimé Bonpland. E tratamos de explorar essa questão circunstancial de que o sábio viajante tenha vindo ancorar sua existência aqui. Vejo esse estudo com bons olhos, pois é uma obra conjunto dos descendentes, do município, da escola e de outros interessados, como eu — avalia Lezcano.
Personagem de Assis Brasil
Além do interesse de seus compatriotas, os descendentes de Aimé Bonpland tem se surpreendido com um crescente fascínio dos brasileiros. Em 2012, o escritor gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil lançou o primeiro romance em português sobre o naturalista, Figura da Sombra.
— Bonpland teve uma importância espantosa para a disseminação da história natural no Cone Sul. Criou e ajudou a consolidar instituições, foi um sujeito dedicadíssimo. Além disso, recuperou as técnicas de cultivo de erva-mate dos jesuítas — diz o escritor.
Assis Brasil quer somar esforços para trazer a Porto Alegre o Congresso Internacional e Interdisciplinar Humboldt-Bonpland, que tem periodicidade anual – em 2019, o encontro foi realizado em Assunção, no Paraguai.
A casa em que Aimé viveu seus últimos dias, na estância El Recreo, segue intacta, conservada por seus descendentes. O jardim diante da construção centenária é decorado com rosas e outras espécies de plantas, mantido por Catalina Gregoria Arce, viúva de Juan Luciano Bonpland, da quarta geração da família na Argentina.
— Sempre fomos de cuidar das coisas, de mantê-las vivas e mais bonitas. Desde que me casei, há mais de 50 anos, tive o cuidado de colocar mais plantas em torno da casa. Quase já não havia mais flores aqui ao redor — lembra Catalina.
Foi nesse jardim que, em 2017, a família recebeu os brasileiros da 25ª Cavalgada Farroupilha, que iniciaram naquele campo um trajeto de 260 quilômetros até São Borja, dividido em duas etapas – naquele ano, foram de Recreo até a cidade de Yapeyú; e em 2018, retomaram a viagem e seguiram até São Borja.
— Foi algo inesquecível. Nós, descendentes, viveremos eternamente agradecidos. Além disso, fizemos grandes amizades nesse encontro — recorda Amado Bonpland, da quinta geração da família na Argentina.
Amado é um homem do campo, sem vaidades literárias ou grandes conhecimentos de história, mas não hesita em receber os interessados na história do ilustre antepassado. Escuta com humildade e atenção quando especialistas como David Guevara contam episódios desconhecidos, e passa até mesmo dias sobre o lombo do cavalo e dormindo no relento se for preciso – foi isso que fez nas duas etapas da cavalgada que homenageou Aimé, quando também se tornou um cavaleiro farroupilha.
— O interesse dos brasileiros nos inspira e renova nossa força para homenagear o Sábio — diz Amado.
O governo paraguaio também tem planos para estabelecer um roteiro de viagem com base na vida do médico francês. A Ruta Bonpland está sendo gestada pelo Ministério do Turismo do país. Segundo o governo, a rota seria realizada por meio de uma parceria entre Argentina, Brasil e Uruguai, simbolizando “a integração territorial dos povos”.
Para David Guevara, a vida de Bonpland é um exemplo de que é possível deixar um legado duradouro e transformar o meio em que se vive sem usar violência:
— Precisamos ter em mente que esse é um sujeito que percorreu muitos lugares do mundo, foi influente em diferentes contextos, e jamais ergueu uma arma na vida.