Há quase 200 anos, um naturalista francês viveu no pampa gaúcho curando doentes, plantando rosas e cultivando um sonho: tornar a erva-mate tão conhecida no mundo quanto o café ou o chá inglês. Médico, farmacêutico e botânico, Aimé Bonpland (1773-1858) acompanhou o explorador Alexander von Humboldt (1769-1859) em viagens que tornaram o cientista alemão mundialmente famoso, foi designado pela imperatriz Josefina Bonaparte (1763-1814) para cuidar dos jardins de sua residência, o Château de Malmaison, e se relacionou com personalidades que definiram fronteiras do continente sul-americano, como o venezuelano Simon Bolívar (1783-1830) e o argentino Justo José de Urquiza (1801-1870).
Apesar de ter vivido por mais de 20 anos em São Borja e ser um dos principais impulsionadores para que o cultivo da erva-mate se tornasse comercial, possibilitando que o hábito do chimarrão se ampliasse no Estado, Aimé Bonpland ainda é uma figura à sombra do imaginário popular e dos livros de História no Rio Grande do Sul. Mas esse quadro vem mudando nos últimos anos. Argentinos e brasileiros estão organizando ações em conjunto para valorizar a memória e o legado de Bonpland – surpreendendo até seus descendentes.
Em 2018, houve uma cavalgada para celebrar o francês, passando por cidades da Argentina e finalizando em São Borja. Ali, o Museu Ergológico da Estância recebeu uma placa em homenagem a Bonpland, a única na região. A iniciativa também gerou a gravação de um documentário sobre o personagem, idealizado pelo tradicionalista Doroteo Fagundes, que deve estrear nos próximos meses.
O principal motivador da cavalgada foi João Antônio Fagundes de Abreu, o Quico. Irmão de Doroteo, Quico é membro de Instituto Cavaleiros Farroupilhas e vive em Uruguaiana, cidade fronteiriça com a argentina Paso de Los Libres.
— Bonpland sempre me intrigou, por ser um viajante que se relacionava com os trabalhadores e os indígenas por onde passava. Descobriu propriedades de plantas e salvou muitas vidas como médico — aponta Quico.
É em Libres que estão os restos mortais de Aimé Bonpland, que viveu seus últimos anos em uma estância no distrito de Corrientes. Por conta dessa vivência, a história do francês é razoavelmente conhecida dos dois lados da Fronteira Oeste. Na Argentina, é conhecido como “el Sabio”. No Paraguai, entrou para a história como Karaí Arandu (“senhor sábio”, em guarani). No Brasil, era chamado de “Don Amado”.
Incidente macabro
As histórias sobre Bonpland que circulam pela Fronteira estão geralmente associadas a eventos pitorescos – e não necessariamente verdadeiros – de sua trajetória. A mais citada é a bizarra tentativa de assassinato que sofreu depois de morto. Como havia passado por um embalsamento, processo pouco comum à época, foi dado como vivo por um bêbado anônimo – ou pelo cunhado, conforme outras versões – que se enfureceu por tê-lo cumprimentado e não ser correspondido. Enojado com a imóvel indiferença de Bonpland, o homem o esfaqueou – ou disparou tiros contra ele, segundo outros.
Os registros históricos não confirmam esse macabro incidente, mas deixam a possibilidade em aberto, já que o corpo do francês foi de fato embalsamado, mas acabou não sendo enterrado onde estava previsto, na capital de Corrientes.
— Algo ocorreu após o embalsamamento que não permitiu o traslado do corpo a Corrientes, por isso foi enterrado em Paso de Los Libres. Há muitas hipóteses e versões, mas não há como determinar com exatidão o motivo — afirma o historiador argentino David Guevara, que está escrevendo uma biografia sobre Bonpland, com apoio da fundação binacional Yayetopá.
Mais um relato prosaico sobre Bonpland tem a ver com as especulações sobre retorno à América. Por que, após ganhar fama e estabilidade em Paris, foi se instalar nos confins do Brasil e da Argentina? Para muito fronteiriços, a resposta é simples: porque teve um tórrido caso de amor com Josefina Bonaparte. Para escapar da sanha de vingança do marido traído, nada menos do que Napoleão Bonaparte, refugiou-se nos remotos campos platinos.
— Jamais encontrei qualquer prova que documentasse esse envolvimento amoroso – esclarece Guevara. — A relação de Josefina com o Aimé era a de uma imperatriz com um súdito, mas também envolvia muito carinho. Josefina compartilhava do mesmo amor que Bonpland tinha pelas flores e pela natureza, por exemplo. Tinham muitos interesses em comum e admiração mútua. Mas o retorno para a América tem outros motivos.
A verdade é que Josefina morreu em 1814, quando Napoleão já estava casado com Maria Luísa de Áustria. Com a morte de Josefina, os herdeiros não tinham mais interesse em manter Bonpland em Malmaison, e o médico buscou alternativas para refazer sua vida. Na América do Sul, havia a amizade de Simon Bolívar, com quem conviveu na Europa, e o convite de Buenos Aires para organizar um museu de história natural. Ele escolhe a Argentina, onde aporta em janeiro de 1817, ao lado da mulher, Adelia Bouchy, e da enteada, Emma.
Na capital argentina, passa a exercer a função de médico e a viajar pelo interior do país para coletar espécies nativas. Não tardou para se dar conta de que os planos do museu da história natural não sairiam do papel, por conta de instabilidades políticas.
O país parecia mais estável do que a Venezuela de Simón Bolívar, mas tinha muitas disputas internas em aberto, já que o território estava se conformando após a Guerra da Independência (1810-1816).
Na vida familiar, mais frustração, com o rompimento iminente de seu casamento – Adelia e Emma em breve voltariam para a França para nunca mais rever Aimé. Mas o francês, em suas jornadas como naturalista, já havia encontrado obsessão que passou a dar sentido a sua vida: o cultivo da erva-mate.
Ao reparar no hábito de tomar chimarrão por parte dos homens do campo, Bonpland concluiu que a bebida poderia entrar na disputa pelo mercado das infusões, que já havia tomado proporções globais. Para o naturalista, a erva-mate poderia ser alçada ao mesmo patamar internacional do café e do chá preto. Mas, para tanto, havia um mistério a ser desvendo: como semear uma planta que geralmente era extraída da natureza. Era preciso pensar em um cultivo ordenado e racional, e não ficar sujeito à imprevisibilidade do extrativismo praticado até então.
Os jesuítas já haviam aprendido com os indígenas como semear a erva, mas foram varridos das reduções. Bonpland é que conseguiu recuperar esse conhecimento e servir de elo para as gerações seguintes.
DAVID GUEVARA
Historiador
Com esse objetivo em mente, abandonou Buenos Aires em 1820 rumo à região de Corrientes. Seguindo pelas margens do Rio Paraná, se instalou em Santa Ana, antiga redução jesuítica da província de Misiones. Era o local ideal para seu estudo, pois jesuítas e nativos já haviam conseguido anteriormente estabelecer ali um cultivo racional de erva-mate. Com um traquejo único para se comunicar com os nativos, o francês logo conseguiu limpar os ervais abandonados e aprender com os indígenas as técnicas para explorá-los.
— Os jesuítas já haviam aprendido com os indígenas como semear a erva, mas foram varridos das reduções. Bonpland é que conseguiu recuperar esse conhecimento e servir de elo para as gerações seguintes — avalia David Guevara.