Professor de Psicologia da Universidade Nacional Autônoma do México, na Cidade do México, Michel Reyes esteve em Porto Alegre, em setembro, para participar do 2º Congresso Internacional do Centro de Estudos da Família e do Indivíduo (Cefi) – Integrando Diferentes Abordagens. Um dos temas abordados pelo psicólogo foi o manejo da raiva, emoção sobre a qual, segundo ele, pouco se fala – nas mais diversas etapas da vida.
— Uma das grandes dificuldades dos pais é aprender a reconhecer o mundo interno das crianças — explicou o docente. — Não podemos pedir que a criança não chore.
Por que não falamos objetivamente sobre a raiva
“A raiva é uma emoção perfeitamente normal, saudável, como qualquer outra que sentimos – ficamos felizes por um tempo e tristes em outros momentos. Socialmente, a raiva está condicionada a uma série de expectativas culturais. Creio que as culturas brasileira e mexicana não diferem muito em alguns aspectos: a raiva é um sentimento mais censurado nas mulheres; aos homens, é um pouco mais permitido. Em diferentes contextos, diversas expressões emocionais não são apropriadas. No trabalho, não é esperado que manifestemos nossa raiva, e sim que sejamos mais serenos.
A raiva é uma emoção que não está bem socializada. As pessoas geralmente têm dificuldade para reconhecê-la e expressá-la de maneira positiva – e aí me refiro ao fato de que possa levar a uma real solução de problemas ou a comunicar uma dificuldade que esteja sendo enfrentada. Quando alguém sente raiva, é porque foi transgredido um limite pessoal, porque há um obstáculo para que se consiga alcançar uma meta ou porque alguém está se percebendo prejudicado ou capaz de prejudicar o próximo. O problema é que a raiva, como qualquer outra emoção, pode sair do controle se não tivermos habilidades para identificá-la, nomeá-la e expressá-la de maneira apropriada. No âmbito da saúde mental, é frequente falar de problemas relacionados com a ansiedade, que quase sempre é medo, ou problemas associados à tristeza, à desmotivação, à depressão – mas dificilmente se fala da raiva.
A razão, creio, é dupla: em primeiro lugar, porque normalmente se considera a raiva um sintoma de outro problema. Por exemplo, é comum ter dificuldade de controlar a raiva em pacientes com transtorno bipolar em fase maníaca. Também é comum que pacientes com estresse pós-traumático sintam raiva. Isso é interessante: não falamos que o problema é a raiva, e sim o estresse.
E há outra questão pela qual não se fala da raiva: uma razão política. A raiva se associa muito à agressão, verbal ou física. Então, considerar a raiva um problema de saúde nos levaria, muitas vezes, a repensar questões políticas sobre as abordagens que fazemos a agressores sociais em diversos contextos. São pessoas que precisam de ajuda psicológica ou criminosos?”
Limites e níveis aceitáveis
“É uma questão muito subjetiva, totalmente individual. Todos temos esse limite com o qual podemos tolerar e aceitar um certo nível de ativação emocional sem sentir que já estamos perdendo o controle. Uma pessoa que tem dificuldades para reconhecer, nomear e expressar emoções, ao menor indicativo de que está se alterando – como sentir rubor no rosto –, isso pode ser suficiente para que ela diga ‘não aguento mais’, ‘preciso acabar com isso’ e grite, ou se automedique, ou beba álcool, como uma maneira de se autorregular. Pode haver outras pessoas que toleram muito mais a raiva. É uma questão muito particular para cada um e para aqueles que nos rodeiam, que devem definir até que ponto é aceitável, até que ponto funciona para comunicar ou resolver e até que ponto já está sendo um excesso. Como excesso, entendo que é quando causa dano à própria pessoa ou a outras.”
Diferenças entre crianças e adultos
“A raiva é considerada uma das emoções básicas, ou seja, existe em praticamente todas as culturas, desde a infância. Há emoções que são aprendidas com a socialização, como a culpa, mas a raiva é uma emoção muito básica.
E uma emoção básica é uma emoção que compartilhamos com nossos parentes primatas – também se pode observá-la em chimpanzés. Então, não há muita diferença: franzir o cenho, mostrar os dentes, tensionar a mandíbula, apertar os punhos, gritar... são sinais que vemos em crianças e adultos. O que é diferente é que o adulto já aprendeu a inibir, é muito mais comum vermos o adulto contido. Ele trata de respirar, de se manter mais quieto, e a criança não consegue. Os adultos tendem mais a se retirar de uma situação que os incomoda, o que as crianças ainda não aprenderam a fazer. Se somos bons observadores, notaremos que as expressões da raiva são praticamente as mesmas. Mas não é muito comum ver agressão entre crianças. O mais comum é a birra: elas gritam, se atiram no chão... Um adolescente ou um adulto com raiva que bate, destrói algo ou insulta, isso foi aprendido. Ou seja, a raiva não é agressão. Está associada à agressão, mas não é a mesma coisa. Em pré-adolescentes, adolescentes e adultos, já podemos ver esse tipo de expressão, a inibição e a agressão. Aí está a diferença.”
Como lidar com a raiva dos filhos
“Uma das grandes dificuldades dos pais é aprender a reconhecer o mundo interno das crianças. Eles devem observar os sinais: avermelhamento da face, tensão muscular e da mandíbula... Dificilmente esses sinais se associam a qualquer outra emoção. Os pais devem dizer ao filho: ‘Acho que você está com raiva’, ‘Tenho a impressão de que você está com raiva’. Também têm de ajudar o filho a enxergar uma relação: ‘Entendo que isso é normal porque seu brinquedo quebrou’. É importante ensiná-lo a reconhecer essas expressões: ‘Acredito que você esteja com raiva porque está fechando os punhos e está vermelho’. Isso ajuda a criança a enxergar algumas de suas reações, dar-lhes nomes e associá-las a algo que aconteceu antes. É ótimo para ajudá-la a regular suas emoções. Ao apontar que a tensão é consequência de um problema que está sendo detectado, já se pode dizer a ela: ‘Vamos nos acalmar!’. Ensinar estratégias como respirar, concentrar-se em tentar entender o problema e a resolvê-lo.
Não podemos pedir que a criança não chore. Se ela chora, o ideal é dizer: ‘Noto que você está com raiva porque está chorando e está tenso’. Assinale que isso é normal, que ela está se sentindo assim porque aconteceu algo. Ensinar a criança a fazer associações lhe dá a possibilidade de se olhar e olhar a situação que gera a emoção, pensando, a partir daí, em soluções – para regular sua própria experiência e para resolver o problema. Isso pode prevenir que, no futuro, o adulto tenha problemas com o controle de sua raiva.
Sabemos que uma criança, um adolescente ou um adulto precisam pedir ajuda quando não conseguem fazer isso. Indicadores: sentem-se cronicamente raivosos e incapazes de expressar isso. Se você se sente irritado a maior parte do dia, talvez seja necessário consultar um profissional para descobrir o que está acontecendo. Se você sente que essa emoção sai do controle e que não consegue expressá-la de forma que os outros a entendam, trata-se de outro indicativo para pedir ajuda. E, definitivamente, se a maneira pela qual expresso minha raiva provoca o distanciamento das outras pessoas ou as prejudica, esta é uma bandeira vermelha. Devo pedir ajuda imediatamente. A ajuda pode ser com psicoterapia e, em alguns casos, com uma intervenção psiquiátrica, para um apoio farmacológico mais urgente.”