Por Renan Quinalha
Advogado, professor de Direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
No último dia 6, uma declaração do atual chefe do departamento de polícia de Nova York (NYPD), James O’Neill, teve enorme repercussão. “O que ocorreu não deveria ter ocorrido, as ações da NYPD foram um erro”, disse, em referência à repressão policial que, há exatos 50 anos, converteria um singelo bar em um verdadeiro ícone das lutas pelos direitos LGBT’s em todo o mundo.
Desde meados da década de 1960, o bar Stonewall Inn era controlado por máfias que subornavam as autoridades policiais para manter o funcionamento da casa, que sequer tinha licença para comercializar bebidas alcoólicas, além de outras irregularidades. Periodicamente, agentes passavam no bar para receber suas propinas, e aproveitavam para dar batidas de modo a humilhar, identificar, chantagear, prender e extorquir os frequentadores. A corrupção e a violência eram parte do cotidiano da experiência LGBT em um de seus poucos lugares de sociabilidade.
No entanto, em 28 de junho de 1969, o que parecia ser só mais dos diversos episódios de assédio policial contra pessoas LGBT que frequentavam o bar, localizado no pulsante bairro nova-iorquino de Greenwich Village, tornou-se uma rebelião.
Já era madrugada quando a polícia apareceu e começou a abordar, de forma agressiva, as mais de 200 pessoas que ali estavam. Algum desajuste ocorrera no acordo entre polícia e máfia. Os agentes começaram a revistar e identificar os presentes, já separando aqueles que seriam detidos e os que seriam soltos, como sempre faziam. Também começaram a apreender as bebidas alcoólicas. Mas os poucos oficiais e viaturas não eram suficientes para a prisão de tanta gente. Foi preciso esperar a chegada de reforço, e, nesse contexto, eclodiu uma revolta espontânea. Sem que tivesse havido qualquer planejamento prévio, o público do bar, composto predominantemente por LGBT’s latinas, negras e de classe média-baixa, resolveu dizer um “basta” à violência.
Há diversas versões e disputas de narrativas sobre como se desenrolaram, durante dias, esses conflitos entre polícia e LGBT’s. Fala-se em quem deu o primeiro grito contra um policial, quem jogou a primeira pedra na viatura, quem liderou a rebelião. Apesar das diferenças, todos os relatos convergem para a descrição de um motim que começa a se formar, por meio da combinação de pequenas desobediências individuais, tais como pessoas se negando a entregar documentos, não se deixando algemar e nem ficando em fila conforme o comando das autoridades. Assim, as ruas do entorno tornaram-se palco de uma cena insólita de inversão de papeis: a polícia, que sempre perseguia a população LGBT, saiu do episódio constrangida e desmoralizada.
Mas não era essa a primeira vez que a população LGBT irrompia na cena pública reivindicando direitos e combatendo a violência policial. Há registros de confrontos parecidos em bares na Costa Oeste do EUA da década de 1960, destacando-se, por exemplo, a experiência da revolta da Compton’s Cafeteria, em San Francisco, em 1966. Muitas lutas LGBT’s, em diversas partes do mundo, antecederam esse acontecimento.
Porém, foi Stonewall que ficou para a história como o mito fundador do movimento LGBT internacional. Pois, se é verdade que nem tudo começou em Nova York, não é menos verdadeiro que muitas coisas mudaram a partir dali. Afirmou-se outro estilo de militância sob o lema fight back (“responda lutando”) e um novo movimento – mais combativo e menos assimilacionista – emergiu com mais clareza. A vergonha passou a dar lugar ao orgulho como vetor de ação política.
Tanto que, depois de Stonewall e graças a ele, seriam fundados grupos que pela primeira vez estamparam orgulhosamente a expressão “gay” nos seus nomes: o Gay Liberation Front, que remetia às frentes de libertação anticoloniais, e o Gay Activists Alliance. Além disso, nas maiores cidades americanas, começariam a ser realizadas, já em 1970 e anualmente, as Paradas do Orgulho LGBT, formas de visibilidade depois exportadas para todo o mundo e que expressam, até hoje, o espírito de Stonewall: ocupar as ruas e romper com a invisibilidade imposta pelo gueto e pela violência.
Sem dúvida, a hegemonia cultural e geopolítica dos EUA foi fundamental para conferir a aura de universalidade para essa experiência particular. Também funcionaram como antecedentes desse episódio a emergência dos novos movimentos sociais na década de 1960, bem como a contracultura, as lutas anticoloniais e as mobilizações contra a Guerra do Vietnã. De qualquer modo, Stonewall tornou-se uma referência para LGBT’s que ainda enfrentam, diariamente e em todas as partes do globo, os mesmos problemas de violência e preconceito desse passado.
Por isso é que o pedido de desculpas do chefe da NYPD, meio século depois, é significativo. Mais do que uma homenagem a quem se engajou na rebelião, trata-se de uma medida de justiça e reparação por parte do Estado, ainda que tardia. Reconhecido o erro por parte da polícia, espera-se que não sejam necessários outros 50 anos para que asseguremos, enfim, direitos e políticas públicas para a plena cidadania da população LGBT.