Conteúdo produzido pelas vencedoras de 2018 do Primeira Pauta, programa que seleciona alunos de Jornalismo para imersão e treinamento em práticas jornalísticas na Redação de ZH. São elas (da esquerda para a direita): Vanessa Pedroso (Centro Universitário da Serra Gaúcha), Bianca Obregon (Unipampa), Bibiana Davila (UFRGS), Mariana Hallal (UFPel) e Andressa Canova Motter (UFSM).
No fundo do quarto de paredes azuis, seu Raimundo, em cadeira de rodas, ouve música gauchesca em seus fones. Na sala, dona Juliana faz crochê. Os demais estão no refeitório: é hora do lanche – e de contar causos entre companheiros. Na terceira idade, dizem, as horas parecem ficar mais longas, silenciosas e solitárias. Por sorte, sábado à tarde é dia de festa no Recanto São Francisco, no bairro Belém Velho, na Capital. A palhaça Doutora Estrelinha e sua trupe chegam cantando, fazendo piadas e arrancando sorrisos dos 45 moradores do local.
As sobrancelhas enfeitadas e os adereços coloridos compõem o figurino de Márcia Dalboso, 54 anos. O nariz vermelho, último a ser colocado, faz nascer a personagem da administradora de empresas, que descreve assim suas transformações:
— Tu começas a falar um pouco diferente, a achar tudo engraçado. Esses são os primeiros sinais de que o palhaço que mora dentro de ti chegou.
Márcia começou a frequentar o Recanto há quatro anos, de cara limpa. Tinha a companhia da amiga Ana Laura Lima Gomes, 38, bancária, na visita aos idosos – vítimas de maus-tratos ou em situação de baixa renda. Certa vez, perguntaram à equipe do que os vovôs mais precisavam.
A resposta foi imediata: alegria.
Inspiradas no filme Patch Adams: O Amor É Contagioso (1998), que conta a história do médico norte-americano que se vestia de palhaço para visitar os pacientes, as duas deram vida, em 2015, ao projeto Folia do Coração. No início, eram apenas Márcia e Ana Laura, Estrelinha e Pimentinha. Aos poucos, chegaram mais voluntários, recrutados com base em critérios simples: amor, boa vontade, espírito de colaboração. Hoje, já são 12, como o Rocambole, a Pipoca, o Girassol, o Poka Sombra, o Totoso e a Belinha. Todos entram na brincadeira, que na verdade é bem séria.
— A gente tem um cuidado muito grande com o que falar, o que vestir. Com os idosos, não é bom usar uma roupa muito colorida, porque assusta; não pode falar muito alto, porque incomoda; nem falar muito baixo, porque eles não ouvem. Tem que ter técnica, ler, estudar, se empenhar — explica Márcia.
Desde o início, o grupo participa de cursos e oficinas de aprimoramento, além de preparar esquetes e roteiros para todas as atividades – nem sempre seguidos, já que o improviso é regra.
— Pego o estetoscópio, coloco no coração e falo para o meu colega: “Tá ouvindo?!”. Ele responde: "Tô ouvindo, sim!".
Tá tocando uma música”. E aí nós começamos a cantar. Também colocamos no braço do vovô o “depressinha”, que, em vez de medir a pressão, enche um balão na forma de coração – narra Estrelinha.
Para Daniela Trindade, assistente social do Recanto São Francisco, o trabalho do Folia do Coração é importante para a autoestima dos idosos, que criam vínculos com os voluntários.
— A casa se transforma em uma alegria só. Quando eles saem daqui, tudo fica com cheiro de flor — relata Daniela.
As brincadeiras dos palhaços contagiam dona Gleidy, moradora da casa há 13 anos. Pequena, de passos lentos apoiados por um andador, ela acorda cedo e, durante o dia, gosta de lavar roupa e ouvir rádio. Nas visitas do grupo, dona Gleidy dança e canta com algumas limitações, mas não deixa de participar:
— É uma maravilha. Fico bem alegre quando eles vêm e fico triste quando eles vão. E eu não gosto de tristeza.
Márcia compara o trabalho realizado ao ato de plantar uma sementinha. Com esperança de que surjam bons frutos, nem passa pela cabeça desistir. Pelo contrário, ela quer ir além: pretende transformar o projeto em uma ONG, facilitando a captação de recursos.
— O Folia é muito maior do que nós — justifica Márcia. — Tu não precisas ser palhaço, porque nem todo mundo tem esse perfil.
Mas podes fazer carinho, conversar, escutar o outro, pegar na mão. Basta teres a percepção de até onde o outro pode ir e de como tu podes contribuir com a vivência dele. Nada é mais recompensador do que ouvir: “Vocês vão voltar, né?”.