Este conteúdo foi produzido por estudantes de Jornalismo vencedores do Primeira Pauta, programa que seleciona alunos para imersão e treinamento em práticas jornalísticas na Redação de ZH
Nove meses depois de o prefeito José Fortunati ter anunciado recursos para a criação de um centro de atendimento aos imigrantes em Porto Alegre, ainda não há data para o início de seu funcionamento. Mesmo com o dinheiro da primeira parcela (R$ 178 mil) liberado há meio ano pelo governo federal, a burocracia – diz a prefeitura – impede a realização do projeto no Centro Vida, na Avenida Baltazar de Oliveira Garcia, zona norte da Capital. Enquanto isso, cerca de 3 mil haitianos e senegaleses permanecem em busca de ajuda e sem um local de apoio especializado.
Leia mais:
Conheça os cinco vencedores do Primeira Pauta ZH
Novos imigrantes mudam o cenário do Rio Grande do Sul
Especial: ZH acompanhou viagem de imigrantes desde o Acre
Em 13 de janeiro, em uma solenidade presidida por Fortunati, foi divulgada uma parceria entre os governos estadual e federal para a criação do Centro de Referência e Acolhida aos Imigrantes e Refugiados em Porto Alegre (Crai). Na presença de imigrantes e autoridades, foi anunciado o repasse de R$ 739 mil do governo federal, com contrapartida de R$ 9,5 mil do Executivo municipal, para montar o espaço de atendimento aos imigrantes. Lá, eles poderiam encontrar abrigo em situações emergenciais, cursos gratuitos de língua portuguesa, capacitação profissional, oficinas de saúde e de cidadania e um ponto de encontro e de socialização.
O dinheiro para iniciar o projeto chegou em março, segundo o secretário de Direitos Humanos de Porto Alegre, Wilson Pastorini. A burocracia estaria impedindo a implementação do Crai.
– Está demorando porque tudo é feito através de licitação, e esses processos são demorados. A primeira etapa será a compra de mobiliário e equipamentos para a instalação do espaço – afirma.
O projeto tem três fases: compra de equipamentos, contratação de pessoal e aquisição de bens de consumo, como travesseiros e toalhas. Além disso, a prefeitura precisa da regulamentação da cedência do espaço pelo governo estadual para a reforma de parte do Centro Vida, uma área física de 120 mil metros quadrados. Em 2015, o Centro Vida era conhecido por ser um dos principais lugares de atendimento aos imigrantes na Capital. Hoje, está vazio.
O cronograma prevê a entrega do Crai a partir do segundo semestre de 2017. Por enquanto, imigrantes encontram no Centro Vida apenas um ponto de rede wi-fi, oferecida gratuitamente pela ONG Associação Filhos Nascidos do Coração (Afinco). É lá que muitos estrangeiros conectam seus celulares à internet para conversar com suas famílias.
Orgulho e preconceito
O haitiano Simon LaGuerre, 40 anos, é um dos estrangeiros que ainda frequentam o Centro Vida para utilizar a internet. Ele e a mulher, Cherline, 24, chegaram ao Brasil quando ela ainda estava grávida. Hoje, com o filho Prinsley, de seis meses, o casal está desempregado e com dificuldades em se manter no país.
– A gente fala com a nossa família, diz que está tudo bem e conta a situação daqui. A gente tenta achar emprego, mas as pessoas falam que não quando descobrem que somos haitianos – relata Cherline.
Enquanto a implementação do Crai não acontece, algumas entidades realizam trabalhos voluntários. Uma delas é o Centro Ítalo-Brasileiro de Assistência e Instrução às Migrações – Cibai, uma instituição beneficente ligada à Paróquia Nossa Senhora da Pompeia. Nesse local, os imigrantes encontram orientações jurídicas para formalizar seus documentos, cursos de capacitação, aulas de português, ajuda para conseguirem emprego e espaços de socialização.
Ex-professor universitário e pesquisador voluntário do Cibai há 13 anos, Jurandir Zamberlam calcula que Porto Alegre já recebeu mais de 2 mil haitianos e senegaleses e ressalta a importância do aprendizado de português. Além de aumentar a interação com outros moradores da Capital e, com isso, ter um número maior de oportunidades (sem emprego formal, muitos acabam tornando-se vendedores ambulantes), o conhecimento da língua evita situações de risco que podem ocorrer no mercado de trabalho.
– O empregador contrata o imigrante por 90 dias, e, quando acaba esse prazo, ele o demite. Só que, como muitos não sabem ler, em vez de assinar a rescisão, eles acabam assinando o pedido de demissão. Eles são enganados. Isso não aconteceria se eles soubessem português – afirma.
Zamberlam também conta que, além de toda a falta de suporte e das dificuldades que uma pessoa encontra quando muda de país, os imigrantes ainda sofrem com o racismo e a xenofobia:
– De noite, quando só os haitianos e os senegaleses estão no ponto de ônibus, o motorista não para. Ninguém imagina o sofrimento deles. Mulheres negras chegam aqui chorando ao verem o que os brasileiros fazem e as obrigam a fazer.
Além do preconceito racial, senegaleses também sofrem com o preconceito religioso, por serem muçulmanos.
– Quando é um dia especial, uso meu roupão. Às vezes, as pessoas olham e pensam que é um homem-bomba. Mas muçulmano não é bandido, muçulmano é quem prega a paz – diz Mor Ndiaye, 30 anos.
Mor preside a Associação dos Senegaleses de Porto Alegre. E, para combater esse preconceito, está criando projetos, além de acompanhar as ações da prefeitura:
– Não sabemos ainda por que a obra do Crai não começou.
Um dos sonhos do senegalês é ter um espaço onde, duas vezes por semana, haja exposições com comidas típicas do Senegal, como o thieboudienne, que em tradução literal do wolof (língua franca do país) é arroz com peixe. Também seriam feitos desfiles de moda com as roupas tradicionais para exaltar as peças trabalhadas e coloridas que reforçam a vaidade do povo senegalês. Essas atividades seriam abertas a todos que tivessem interesse em saber um pouco mais sobre os hábitos e a cultura dos imigrantes senegaleses.
– Todo preconceito é falta de informação. Queremos mostrar um pouco da nossa cultura e nossa tradição para que a comunidade possa nos conhecer de verdade e nos respeitar.
Mesmo diante de um cenário desanimador, Mor, que já está no Brasil há oito anos, acredita que, um dia, os haitianos e senegaleses estarão verdadeiramente incluídos na sociedade gaúcha:
– Acho que vai demorar, mas tenho certeza de que vai acontecer, pelo menos aqui em Porto Alegre. Temos direito de voz, de trabalhar, estudar e viver como qualquer outro ser humano.
Viver em um país estrangeiro
(..)
Haitianos deixam famílias em busca de trabalho
Chegaram ao Brasil em busca da vida
São homens e mulheres de fibra
(..)
Cheios de conhecimento, cheios de talentos
(...)
Alguns vêm para estudar e acabam ficando
Porque o que buscam é o futuro certo
Esse é um trecho da música Fuga de cérebro (Ayisyen kite lakay, no original da língua haitiana crioulo), composta por Alix Georges, 34 anos, haitiano, músico, DJ e professor. Ele chegou ao Brasil há 14 anos, com outros 12 haitianos que vieram estudar. Para Alix, os haitianos não são reconhecidos no Brasil como profissionais:
– Nunca levei meu currículo em uma empresa, porque sei que não vão me contratar. Sou preto. Se me contratarem, vão me colocar para limpar o chão. As pessoas negam vagas para haitianos e não valorizam sua capacitação.
Alix mora há 10 anos em Porto Alegre e, apesar das dificuldades, conta que teve um contato muito forte com a cultura do Estado desde a chegada. Frequenta bailes, toma chimarrão, adora churrascos e aprecia a música gaúcha.
– Em 2006 havia poucos haitianos aqui, por isso tive muito contato com a cultura gaúcha. Na época, até ganhei um CD do Tchê Barbaridade. E também o chimarrão para mim é um ponto de encontro – conta.
Formado em Engenharia da Computação e mestre em Administração, Alix dá aulas de francês na empresa de imigração e intercâmbio Québec Sem Fronteira e organiza a Festa Latina de Porto Alegre. Também trabalha como terceirizado na prefeitura e ajuda imigrantes haitianos que chegam à Capital, função compartilhada com o senegalês Mor Ndiaye.
Mor tem 30 anos, é presidente da Associação dos Senegaleses de Porto Alegre e atua como uma ponte entre a prefeitura e os imigrantes. Formado em Administração no Senegal, ele decidiu vir ao Brasil em busca de oportunidades.
Ao contrário de Alix, Mor, diz ser mais caseiro. Casado há seis anos com uma brasileira, afirma que pretende continuar vivendo em Porto Alegre, aumentar a família e talvez começar uma graduação em Direito. No tempo livre, fica em casa ou vai caminhar na Redenção. Já se considera um porto-alegrense, com ressalva:
– Não 100%, porque eu gosto de ser senegalês também.
Assim como outros imigrantes, Mor mantém hábitos da cultura e da religião de seu país. Com frequência, vai à mesquita que fica na Dr. Flores, no Centro Histórico. Quando não pode ir até lá, faz orações independentemente do lugar em que estiver. Ele frequenta reuniões em uma casa alugada na Zona Norte, onde senegaleses vestem seus tradicionais bubus (conjunto de bata larga e calça) e cantam músicas típicas do país.
Professor de filosofia no Haiti, frentista em Porto Alegre
Os irmãos haitianos Prenel, 35 anos, e Suzane Belfrid, 39, fizeram parte de um dos últimos grupos que ficaram alojados temporariamente no Centro Vida, após chegarem ao Brasil. Eles vivem há um ano e meio em Porto Alegre.
Prenel era professor de Filosofia e hoje é frentista. Mora ao lado do Centro Vida com a irmã e dois amigos. No Haiti, deixou a mulher, a filha e os pais. Suzane, que trabalha fazendo serviços gerais, está grávida de oito meses e tem outros quatro filhos no Haiti, de nove a 15 anos. Os salários dos irmãos são destinados ao pagamento do aluguel, da luz e da água, além de parte ser enviada à família.
– Quero trazê-los, mas isso custaria R$ 8 mil – relata Prenel.
A equipe
>Felipe Goldenberg (UFRGS): felipe.goldenberg@gmail.com
> Eduardo Uhlmann (UFPel): eduardo.uhlmann@hotmail.com
> Joice Caroline da Silva (Unisc): carolinesilvajoice@gmail.com
> Gabriela Garcia (UFRGS): gabrielavgarcia@hotmail.com
> Larissa Burchard (Unipampa): larissa.burchard@gmail.com
Edição e coordenação do projeto Primeira Pauta
Lúcia Pires, Rosane Tremea e Ticiano Osório