Aos 16 anos, Hertha Spier calçava sapatilhas e arrancava aplausos de quem a via dançar na Polônia. O ano era 1934 e, à época, diziam-lhe que ela teria um futuro brilhante nos palcos de Viena. A trajetória da bailarina, entretanto, foi abruptamente interrompida pelas tropas alemãs alguns anos depois, quando se tornou prisioneira dos soldados nazistas e foi conduzida aos campos de concentração de Plaszow, Auschwitz e, finalmente, Bergen-Belsen, na Alemanha.
Depois de meia década vivendo sob o domínio de Hitler, acabou libertada aos 26 anos, desnutrida, órfã e pesando apenas 28 quilos. Mas resiliência é para poucos, e isso Hertha tem de sobra. Neste domingo (29), ela voltou a arrancar aplausos de centenas de pessoas, só que agora em Porto Alegre, e por chegar aos cem anos como testemunha viva de uma história que passa pelos horrores da II Guerra, pela chegada sozinha ao Brasil e, principalmente, pela reconstrução de sua identidade na capital gaúcha.
– O mais especial é que, deste período tão duro, ela não guarda ódio nem rancor, apenas tristeza. Minha mãe perdeu toda a família no Holocausto, viu fuzilamentos, viu sua família sendo assassinada. Mas, aos poucos, construiu tudo de novo, e hoje pode comemorar entre amigos e parentes – conta o filho Lucio Spier, 67 anos, que ao lado do irmão Mario, 69, preparou a homenagem para a sobrevivente.
Com um colar de pérolas, unhas pintadas de vermelho e cabelo cuidadosamente encaracolado, ela, que hoje se locomove em cadeira de rodas, sentia-se dançando enquanto recebia os cumprimentos dos 200 convidados que foram prestigiá-la em um salão do hotel Plaza São Rafael durante o brunch em comemoração ao seu aniversário. Entre familiares e amigos – em sua grande maioria filhos e netos de sobreviventes que chegaram ao Brasil na década de 1940 –, um afeto de longa data também recebeu uma merecida homenagem: a sueca Kaisa Person, 90 anos, que veio especialmente para a ocasião. Em 1945, voluntária da Cruz Vermelha, ela se tornou um dos pilares na recuperação física e mental da sobrevivente.
– Eu lembro que, no final da guerra, Hertha foi levada junto com outras mulheres muito debilitadas para um hospital perto de onde eu morava. Todos os dias, durante sete meses, eu ia lá ficar com elas, e acabamos construindo uma amizade forte. Ela não tinha mais ninguém, e a gente conversava muito, contava histórias, costurava e fazia outros trabalhos manuais. Hertha falava pouco sobre o que tinha vivido nos campos de concentração, mas gostava de contar que, antes de ser levada pelas tropas, adorava dançar. Foi assim que criamos um laço muito forte que dura até hoje – lembra a amiga.
Quando a sobrevivente, poucos meses depois de se recuperar na Suécia, entrou em um navio rumo ao Brasil para começar uma vida nova, as duas perderam o contato. Mas laços como esse ultrapassam tempo e fronteiras. Nas décadas de 1950 e 1980, Kaisa chegou a vir para o Rio de Janeiro atrás da amiga, mas não a encontrou. Foi somente em 2004 que as duas voltaram a se abraçar, graças à publicação do livro A Sobrevivente A21646, escrito pelo gaúcho Tailor Diniz dois anos antes, em que dona Hertha, como hoje é conhecida, relata suas memórias. Assim que chegou às livrarias, a história viajou continentes e chegou ao conhecimento da amiga de longa data, permitindo o reencontro. Entre as lembranças mais marcantes que Kaisa tem da centenária está o momento em que viu, pela primeira vez, a sobrevivente recuperar a alegria de viver. Ela estava, é claro, vestida com um figurino de balé:
– Hertha já estava no hospital havia alguns meses. Ela estava ganhando peso aos poucos e, em uma comemoração de ano-novo, colocou meia-calça, sapatilhas, uma saia bem esvoaçante e dançou para a gente. Os olhos dela brilhavam, e eu presenciei ali um renascimento. Lembro como se fosse hoje. É uma memória que vou levar para sempre comigo. Hoje, em meio aos amigos e familiares dela, vejo o mesmo brilho no olhar da minha amiga.
Dona Hertha, que quando saiu do campo de concentração guardava na memória apenas os nomes e as lembranças dos familiares mortos durante a guerra, hoje se emociona por ter construído uma biografia rica não só em fatos, mas em afetos. Em um vídeo exibido durante a comemoração de seu aniversário, na qual agradeceu a todos que compareceram a sua festa, relembrou o marido, falecido em 1963, e fez questão de mostrar fotos de amigos e parentes que, um a um, formam parte do quebra-cabeça que compõe sua vida no pós-guerra.
O Livro
A História de Hertha Spier inspirou o gaúcho Tailor Diniz a escrever, em 2002, A Sobrevivente A21646 – número tatuado pelos nazistas em seu braço, ainda hoje visível. Baseada em depoimentos e pesquisas, a obra conta as passagens de Hertha pelos campos de concentração de Plaszow (cenário do filme A Lista de Schindler), Bergen-Belsen (onde Anne Frank morreu) e Auschwitz, de onde foi libertada em 1945. Hertha foi uma das entrevistadas por um projeto patrocinado por Steven Spielberg, que ouviu sobreviventes do Holocausto em todo o mundo.
Holocausto
Foi o assassinato de cerca de 6 milhões de judeus europeus pelo regime nazista durante a II Guerra Mundial, através de uma estrutura planejada de campos de concentração e de extermínio.
Nazismo
Ideologia racista que teve Adolf Hitler como seu maior líder. Pregava a existência de uma suposta raça superior e o extermínio de etnias consideradas inferiores. Durante a II Guerra, além de judeus, foram assassinados também ciganos, pessoas com deficiência, homossexuais, comunistas e inimigos do regime.
O nazismo hoje
As atrocidades praticadas pelos apoiadores de Hitler e a derrota da Alemanha na II Guerra não foram suficientes para varrer essa ideologia racista da face da Terra. Existem hoje grupos e partidos que ainda defendem essas ideias na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil, onde negros e nordestinos são alvos de ódio e discriminação.