A festa com os amigos é hoje, mas o aniversário mesmo foi no dia 15 de julho: Hertha Spier, a sobrevivente que carrega no braço a tatuagem com o número A21646, impresso pelos nazistas, chegou aos cem anos.
Para qualquer pessoa, chegar lúcida a essa idade seria um feito. Para uma mulher que enfrentou os horrores da II Guerra, passou por três campos de concentração e perdeu toda a família, chegar aos cem anos lúcida é quase um milagre. Dividir com os leitores a história dela é uma forma de homenagear essa mulher valente a quem me sinto ligada por laços de afeto.
Viúva, com dois filhos médicos, dona Hertha cansou de ouvir que sua vida daria um livro. Um dia, os filhos Lúcio e Mário — esses meninos que aparecem na foto com ela no dia do centenário — decidiram que era chegada a hora de contar a história da mãe para o mundo.
A primeira ideia foi pedir ao escritor Moacyr Scliar que costurasse os relatos dela para transformá-los em livro. Com mil e um compromissos, Scliar não pôde assumir a tarefa. O psiquiatra dela, Luiz Gustavo Guilhermano, e Hans Peter, amigo da família, indicaram meu marido, Tailor Diniz, para ser o biógrafo de dona Hertha. Missão desafiadora para um ficcionista, mas irresistível para quem vive de contar histórias. E assim nossos caminhos se cruzaram.
Durante um tempo que não sei precisar, Tailor frequentou o apartamento da Rua 24 de Outubro para ouvir e gravar os relatos de dona Hertha, que fluíam irregulares. Às vezes, ela falava durante horas, como se os acontecimentos vividos mais de meio século antes estivessem tão vivos quanto os da semana anterior. Em outras, as palavras não vinham, a emoção nublava a memória.
De fragmento em fragmento, preenchendo os espaços vazios com a pesquisa de documentos e com o que se conhece sobre o massacre dos judeus, nasceu em 2002 o livro A Sobrevivente A21646, relato pungente sobre a vida da menina polonesa Hertha Grüber, que sonhava brilhar nos palcos da Europa como bailarina.
Hitler roubou-lhe o sonho e a família inteira. Passou primeiro por um gueto na Cracóvia e depois pelos campos de concentração de Plaszow, Auschwitz e, finalmente, Bergen-Belsen. Ao fim da guerra, quando foi resgatada, tinha 26 anos e pesava 28 quilos, debilitada pela fome e pela febre tifoide.
Levada pela Cruz Vermelha para um hospital na Suécia, foi aos poucos recuperando a condição física, ajudada por voluntários como Kaisa Persson, que no início precisava dar-lhe comida na boca, tal o estado de fraqueza. Emigrou para o Brasil, casou-se, teve dois filhos, ficou viúva e teve de se reinventar como representante comercial para sustentar a família.
A segunda edição do livro, lançada em 2013, traz um capítulo adicional emocionante: os detalhes do reencontro com Kaiza, hoje uma grande amiga da família. Pelas mãos dos filhos, dona Hertha retornou à Polônia natal, visitou a cidadezinha onde nasceu, circulou por lugares marcantes na geografia da guerra, foi à Suécia de seu renascimento. Kaisa, a voluntária que cuidou dela no hospital de Karlstadt, a reencontrou com a publicação do livro, divulgado em uma revista da Suécia, veio Porto Alegre para a festa do centenário. Nós seremos testemunhas de mais este capítulo na biografia da sobrevivente.
Atualização das 16h de domingo: Foi linda a festa dos cem anos de dona Hertha. Ao lado dos filhos e de duas centenas de amigos ela soprou as velinhas com o número 100. Por uma dessas coincidências da vida, Kaisa, a amiga sueca, está completando 89 anos hoje.