Correção: o termo correto é "orientação sexual", e não "opção sexual", como publicado entre as 11:00 e as 17:30 do dia 29/6, em em uma das perguntas desta entrevista. O texto foi corrigido.
Grande nome da ginástica, atleta tetraplégica, cadeirante gay. Laís Souza se acostumou a viver de rótulos – e a passar por cima deles. A ex-atleta não para de se reinventar. Primeiro, ajudou o país a alcançar resultados históricos nas Olimpíadas de 2004 e 2008. Em 2014, estava pronta para representar o Brasil em uma nova modalidade, o esqui aéreo, nas Olimpíadas de Inverno, quando, em um treino, sofreu o acidente que mudou a sua vida. Hoje, entre sessões de fisioterapia, tratamento psicológico e o retorno aos estudos, ela encontra tempo para dar palestras. Neste domingo (1º/7), estará em Porto Alegre para o 4º Encontro de Engenharia de Tecidos e Medicina Regenerativa. Antes da viagem, conversou com ZH sobre a vida de atleta, o acidente e as esperanças de um futuro melhor:
– Fui de movimentos extremos para nada de movimento. Mas deixo um chinelo ao lado da cama para quando eu conseguir levantar.
Laís já foi ginasta olímpica, já treinou esqui aéreo, já viveu momentos de fama e duras derrotas. como você se define hoje, aos 29 anos, depois dessas experiências?
Sigo sendo a mesma Laís de sempre, embora com algumas mudanças óbvias. E também muitos aprendizados. A gente está sempre em mutação. Evoluí espiritual e pessoalmente. Mas, no fundo, permanecemos os mesmos. E isso é uma coisa boa, sabe? Sempre quis e sigo querendo estar bem. Vivendo um dia após o outro.
Como está a sua saúde hoje? O que você consegue fazer e quais ainda são suas principais dificuldades?
Consigo fazer de tudo, não tenho mais tanta dor que me impeça de fazer alguma coisa, embora às vezes eu me pegue sentido dores horrorosas durante a noite. Aí acordo chorando. Atualmente não me poupo de nada, venho fazendo praticamente tudo. Mas é óbvio que em muitos momentos acabo me frustrando. Entendo que hoje sou deficiente, que não posso treinar, correr. Mas o restante eu faço tudo, mesmo. Viajo bastante para dar palestras, tantas que estou me esforçando para reduzir o trabalho nos próximos anos. Também continuo fazendo fisioterapia e estudando.
Você parece ter uma mente inquieta, pensando sempre lá para a frente. Ao longo dos últimos anos, está sendo mais difícil tratar o corpo ou a mente?
Acho que os dois, viu? (Laís fica cerca de 4 minutos quieta, com dificuldade para tossir.) Este é um exemplo: é a primeira vez que fico resfriada, e não sabia como era ficar assim, na minha condição, até agora. Um leve resfriado me deixou de cama, e eu não sei como expulsar o catarro porque não tenho força no abdome, entende? Estão sempre surgindo coisas novas como essa, por isso tento deixar a mente em dia, trabalhar sempre ela para não deixar a peteca cair em nenhum momento.
Ainda te assusta a possibilidade de ter uma recaída?
Sim. Temo, em algum momento, ficar desmotivada para sair da cama, para trabalhar. Só que também sei que, enquanto as pessoas ao meu redor estiverem motivadas, enquanto eu continuar convivendo com minha família, vou ficar firme. Aliás, tenho e pretendo conquistar o sonho de ser mãe. Eu não sei se terei saúde para isso, mas quero. Depois do acidente, achei que nunca mais fosse sentir adrenalina, mas a vida me mostrou que isso ainda é possível.
As pessoas falam muito na perda dos movimentos, mas junto com o acidente você sofreu e ainda sofre também com diversos problemas de saúde, como as dores neuropáticas (um tipo de dor que resulta de uma lesão no sistema nervoso). Sim, nos primeiros anos isso foi horrível. Eu chorava todas as noites porque é uma dor muito forte. Mas, aos poucos, e com os tratamentos, essa dor foi reduzindo. Hoje sinto bem menos, mas ela ainda aparece, principalmente nas mãos.
Sabemos que você faz fisioterapia todos os dias, porque você compartilha isso nas redes sociais. O que faz para trabalhar o aspecto psicológico?
Sigo fazendo terapia sempre que possível para trabalhar a mente. Preencho meu tempo com o trabalho, faço palestras e eventos, minha principal fonte de renda. E também comecei, recentemente, a cursar graduação em Psicologia. Imagino que, com minha carreira de atleta, posso passar adiante meus conhecimentos. Senti muito a falta de um psicólogo enquanto treinava. Acho que pode fazer a diferença um acompanhamento como esse para subir de um quarto ou terceiro lugar para o posto mais alto do pódio. Então imagino que posso ajudar outras pessoas e também continuar, assim, no meio do esporte.
Em alguns momentos eu pedia para ela (a mãe): "Me tira disso, me deixa morrer". Mas eram momentos passageiros. Essa parada de querer morrer não existe. O único caminho, pelo menos para mim, é seguir em frente.
LAÍS SOUZA
O que você lembra do dia do acidente? Quando você tomou consciência do que havia acontecido? Antes do acidente eu já tinha conseguido minha classificação para (as Olimpíadas de) Sochi e estava treinando. Lembro que faltava uma semana para a prova. Naquele dia, eu treinava só descida na montanha para não ficar parada, para não engordar. E foi em um treino besta que acabei me machucando. Estava um dia bonito, de sol, e a pista estava boa. Eu me sentia um pouco cansada das competições, mas não foi essa a causa do acidente. Aconteceu porque tinha de acontecer. Só sei que, na hora, desmaiei totalmente. Na época, não me dei conta da gravidade. No início eu tinha tanta dor e febre, sofria tanto com tudo isso, que não tive nenhuma reação quando fiquei sabendo o que havia acontecido. Só foi com o tempo que eu fui percebendo, e passei a chorar bastante sem entender o porquê de tudo o que estava acontecendo. Na verdade, até hoje ainda estou esperando a ficha cair de uma forma que eu realmente compreenda o que aconteceu.
Um pouco antes do acidente, você tinha parado de competir como ginasta por questões físicas e financeiras, e entrou em um quadro de depressão que durou alguns meses. Mas conseguiu dar a volta por cima e encontrou em um novo esporte, o esqui aéreo, uma motivação para seguir a carreira esportiva. Esse episódio lhe ajudou a se preparar para o que estava por vir?
Foi no período de depressão que refleti sobre minha vida e fiz planos futuros. Só que, até então, era um futuro em que eu iria andar. No esqui aéreo eu encontrei prazer, fui conseguindo me encontrar. Era muito diferente e muito bom ao mesmo tempo, mas não me preparou para o que viria a seguir. Tudo o que aconteceu desde o acidente foi 100% diferente do que eu imaginava. Passei um ano em tratamento em Miami. Me reaproximei da minha mãe, que se mudou para lá para cuidar de mim. É complicado estar distante tantos anos e de repente voltar para o colo da mãe com tantas necessidades, como se fosse um bebê novamente. Em alguns momentos eu pedia para ela: "Me tira disso, me deixa morrer". Mas eram momentos passageiros. Essa parada de querer morrer não existe. O único caminho, pelo menos para mim, é seguir em frente.
Você já comentou que essa situação a fez mudar sua percepção sobre a eutanásia. Sim, mudei minha visão quanto a isso. Hoje eu acho que as pessoas devem ser livres para escolher. Cada um sabe bem as coisas boas e ruins que está passando. E, a partir do momento em que fica ruim, que você começa a pensar que aquilo não é para você, então a decisão deveria ser sua. Assim como no caso do aborto. Mas essa é a minha opinião particular. Até hoje nunca quis usar isso, mas não sei dizer como será lá para a frente. Com a idade, a saúde vai piorando, e pode ser que minha percepção mude.
Você já comentou que um dos momentos mais difíceis de todo esse processo foi o retorno ao Brasil, depois de um ano em tratamento nos Estados Unidos. Por quê?
Saí de casa aos 10 anos para viver o sonho de ser atleta, e voltei aos 26 anos totalmente dependente. Fiquei insegura quando a minha forma física, quanto ao que as pessoas iriam pensar de mim. E também insegura em relação às condições do Brasil para um deficiente. Essas foram coisas que me afetaram muito na época. Eu estava muito magra, em uma cadeira de rodas, e sempre fui muito vaidosa, por isso foi tão difícil. Mas tudo mudou quando cheguei no Brasil, pois as pessoas me trataram muito bem, com muito carinho.
Como é a vida de cadeirante no Brasil?
Voltei para estar próxima das pessoas que eu amo, mas sinto falta da facilidade de adaptação para cadeirantes nos EUA. Sinceramente, acho que a situação do Brasil é muito crítica nesse sentido. Tenho a possibilidade de trabalhar, de alcançar minhas coisas, e não consigo me ver na pele de quem não tem oportunidades de jeito nenhum. Enquanto eu for tetraplégica, terei pensão por invalidez do governo. Mas não é suficiente, com certeza não... Hoje eu tenho patrocínio e trabalho, mas também sei e sinto o que é a dificuldade que é ser cadeirante no Brasil. As autoridades precisam conhecer melhor a nossa realidade.
Você vem fazendo tratamentos experimentais, inclusive com células-tronco (a esperança é que ajudem na reparação das lesões na medula espinhal). Como está a sua evolução física? O tratamento com células-tronco sempre me deu muita motivação e muita força para continuar treinando. Aos poucos vejo pequenas e grandes evoluções. Já tenho mais firmeza no tronco e cabeça. Se foi uma ação natural do meu corpo ou se devo isso aos tratamentos, não sei, mas prefiro acreditar nos tratamentos, pois gostaria de continuar com eles. Hoje eu já tenho sensibilidade para algumas coisas, e sentir alguma coisa é sensacional. Sei que a força do meu abdome e das minhas costas também está muito melhor. Também consegui ficar de pé graças um estabilizador conhecido como Ortowalk. Foi muito gostoso. A sensação de ficar sozinha em pé e olhar as pessoas nos olhos é algo que me emocionou. Na cadeira de rodas, estou acostumada a olhar sempre de baixo para cima (veja aqui um registro de Laís em pé com o equipamento).
Sou bissexual e minha família sempre soube. Isso é natural para mim, nunca foi um problema. O que eu não gostei na época (em que assumiu o namoro com uma mulher) é que eu estava com um problema gigante, sem poder caminhar, e todo mundo cuidando da minha sexualidade, em pleno século 21. É sacanagem, né? Desde que sofri o acidente, ganhei muitos rótulos. Primeiro, era a atleta acidentada. Depois, a atleta paraplégica. Agora, sou a atleta gay. No fundo, sou só a Laís Souza.
LAÍS SOUZA
Qual é o seu principal desafio hoje?
Cadeirantes lidam com muitas dificuldades, desde as questões psicológicas, de se aceitar e ser aceito, até as questões externas, como andar em ruas esburacadas, conseguir acessar lugares. Às vezes quero sair com minhas amigas, mas não consigo porque o lugar não é acessível para cadeirantes, por exemplo. A questão sexual também é muito desafiadora. Hoje eu dependo muito mais do meu parceiro do que o que eu tenho para oferecer. Mas, sei lá, acho que venho encontrando formas diferentes de amar, de dar carinho e de ser amada. Ganhei mais sensibilidade em algumas partes do corpo, como o pescoço, a orelha. Enfim, é um outro tipo de relação.
Um ano depois do acidente, você assumiu o namoro com uma mulher (a ex-atleta está solteira atualmente) e passou a ser foco de atenção pela sua orientação sexual, algo que lhe incomodou na época.
Sim, eu sou bissexual e minha família sempre soube. Isso é natural para mim, nunca foi um problema. O que eu não gostei na época é que eu estava com um problema gigante, sem poder caminhar, e todo mundo cuidando da minha sexualidade, em pleno século 21. É sacanagem, né? Poxa, tantas coisas para se preocupar. Eu estava sofrendo com dor e as pessoas preocupadas se eu gostava de homem ou mulher. Desde que sofri o acidente, ganhei muitos rótulos. Primeiro, era a atleta acidentada. Depois, a atleta paraplégica. Agora, sou a atleta gay. No fundo, sou só a Laís Souza.
Com todas as medalhas que você ganhou e todos desafios pelos quais já passou, qual foi sua maior conquista até aqui?
Foi sair do respirador, quando eu estava na UTI, me recuperando do acidente. Aquele momento me deu tanta alegria. Foi libertador sair de uma máquina que estava respirando por mim e voltar a respirar sozinha. Foi um dos grandes momentos na minha vida.
O esporte vai voltar a sua vida?
Quem sabe, pode ser que sim. Mas, é claro, uma forma diferente, assim como tudo que eu voltar a fazer. Não sei ainda se me vejo mãe, se me vejo praticando esporte, ajudando atletas por meio da psicologia. Às vezes penso que vai ser de uma forma e acaba sendo de outra. O que aprendi ao longo dos últimos anos é que, quando encontro as respostas, Deus vai lá e muda as perguntas. E ser surpreendido pela vida é muito bom.
Laís Souza em Porto Alegre
A ex-atleta está em Porto Alegre para o 4º Encontro Internacional de Engenharia de Tecidos e Medicina Regenerativa. Realizado pela primeira vez no Brasil, reúne palestrantes de diversos países para falar sobre pesquisas em engenharia de tecidos e medicina regenerativa. Laís vai contar suas experiências de vida, incluindo o tratamento com células-tronco que tem realizado, no domingo (1º/7), às 17h (veja detalhes e saiba como participar no site termisamerica2018.com.br). Ex-atleta olímpica, ela sofreu um grave acidente em 27 de janeiro de 2014, quando, durante um treino para competir na modalidade de esqui aéreo dos Jogos de Sochi, colidiu a 70 km/h com uma árvore, rompendo duas vértebras.