* EDUARDO WOLF
Doutor em Filosofia pela USP, curador-assistente do Fronteiras do Pensamento
Em sua palestra no Fronteiras do Pensamento em São Paulo, a economista americana Deirdre McCloskey comenta com a plateia que ficou sabendo que Niall Ferguson seria o próximo a falar em nosso seminário. Bem-humorada, Deirdre diz ser amiga do historiador britânico e brinca: "Digam que eu mandei um oi para ele. É um grande historiador – mas ele está errado!". Mais do que uma piada de palco (e das boas), essa provocação revela muito do espírito que o Fronteiras quis trazer ao público com a curadoria pensada para 2017: Civilização: A Sociedade e seus Valores.
Afinal, a sociedade em que vivemos – qualquer um de nós, no Brasil, na China ou na Europa – tem múltiplos valores que pode chamar de seus. É complexa, variada e, ao menos nesse sentido, plural. Seus problemas não são menos complexos, e, por isso, tampouco comportam respostas menos variadas. Foi por isso que, após assistir à brilhante exposição de McCloskey, a autora de uma portentosa trilogia (The Bourgeois Era) em que analisa como o mundo moderno e o capitalismo tal qual o conhecemos surgiu a partir de valores e ideias tipicamente burgueses, o público do Fronteiras pode ver, em seguida, a palestra de Ferguson, cujas explicações para o êxito das sociedades capitalistas ocidentais seguramente são distintas, e não necessariamente compatíveis, com as de McCloskey. Leve-se em consideração, ainda, que a conferência que antecedeu a ambos foi a do economista francês Thomas Piketty, – de quem tanto Deirdre quanto Ferguson certamente discordam. Como é bom ver três figuras talentosas e brilhantes discordarem, oferecendo seus pontos de vista conflitantes, sobre questões tão urgentes como a desigualdade, o funcionamento da economia e os caminhos da sociedade, não?
Civilização – Ocidente vs. Oriente, de Ferguson, é, em certo sentido, o livro que motivou a escolha desse tema. Não em virtude da análise de seu autor, por mais instigante que seja, mas sim porque indagar o que caracteriza nossa civilização – e mesmo o nosso pertencimento à civilização que chamamos de ocidental – é uma oportunidade para refletir sobre nossa identidade, nosso passado e nosso futuro, nossa condição atual com todos os seus dilemas, além de nos levar a exames comparativos. Avaliamos nossa evolução como sociedade, as mudanças, sejam elas positivas ou negativas, nos gráficos de um economista ou pelo argumento de um filósofo. Nos interrogamos pelos mecanismos que fazem mover a História e que transformam as sociedades, seja pela narrativa dos fatos históricos, seja pela gloriosa aventura da ciência, como nos apresentou o físico italiano Carlo Rovelli. Consideramos os conflitos de outros países, os dilemas de outros povos. Exercitamos a empatia e aprendemos a ver o mundo pelos olhos dos outros.
Se o economista brasileiro Eduardo Giannetti e o filósofo francês Gilles Lipovetsky, que debateram no Fronteiras deste ano, trouxeram-nos temas com os quais o planeta inteiro está lidando, como os desafios de uma sociedade de consumo em escala global e as ameaças à ecologia, coube aos escritores Amós Oz e Leonardo Padura oferecer-nos a experiência de pensar o mundo dos valores de povos que enfrentam dilemas que não são os nossos. Não sabemos o que é viver a insularidade de que fala Padura, nem o que é estar em uma ditadura continuada de seis décadas e, ainda sim, reivindicar seu país como lar. Melhor: não sabíamos, pois, com a fala de Padura, nos apropriamos dessa experiência. Não sabemos o que é viver, há sete décadas, em território conflagrado por razões étnicas, religiosas e políticas, muito menos o que é apegar-se a esse território como símbolo da sobrevivência milenar de um povo que já sofreu a ameaça de extermínio. Isto é: não sabíamos, pois ouvindo o israelense Oz aprendemos a ver os diversos ângulos dessa experiência, e com nossa humanidade entendemos o que está expresso em termos de valores em conflito.
E que bom que, mergulhados nessas reflexões, terminamos o ano refletindo sobre a importância da convivência – mais humana, mais franca, mais, vejam só, civilizada! –, como nos fez lembrar a psicóloga evolucionista canadense Susan Pinker. Até porque, de que adianta qualquer reflexão que possamos fazer, especialmente sobre a civilização e os valores da sociedade, se não conseguirmos tirar disso a lição de viver melhor com nossos semelhantes?