Encruzilhadas e paradoxos contemporâneos foram o tema do debate entre o economista brasileiro Eduardo Giannetti e o filósofo francês Gilles Lipovetsky, na noite desta segunda-feira (5), no Salão de Atos da UFRGS, como parte da programação do Fronteiras do Pensamento. Um choque interessante de ideias entre um Giannetti que diagnostica a crise contemporânea como uma crise dos valores que formam o capitalismo, e que, portanto, devem ser alvo de experiências visando a alternativas, e entre um Lipovetsky que defendeu a educação como a única maneira de redicionar as prioridades em uma sociedade em que não se pode abrir mão da tecnologia e em que não parece haver alternativa radical ao modelo capitalista em vigor.
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Cada palestrante teve cerca de 20 minutos para desenvolver uma primeira apresentação de suas ideias sobre os paradoxos da sociedade de consumo, e, mais tarde, ambos debateram um com o outro em um encontro mediado pelo jornalista Roger Lerina. Lipovetsky falou primeiro, expondo, em essência, a tese principal de seu livro mais recente, Da Leveza: Rumo a uma Civilização sem Peso (Amarilys, 2017).
– A leveza não costuma ser um conceito analisado do ponto de vista econômico, mas ao fim espero ter tornado as conexões claras – disse.
Como Lipovetsky já defendeu em outro de seus livros, vivemos atualmente na "sociedade do hiperconsumo", aquela na qual todas as principais experiências formadoras hoje foram monetizadas e se tornaram itens à venda.
– Se você precisava falar com alguém, antes você buscava alguém na sua família ou entre seus amigos. Hoje, você marca hora no psicólogo. Para correr, as pessoas pagam mensalidade de academia – detalhou.
Para ele, esse hiperconsumo vem também promovendo o elogio da leveza, da ligeireza, valorizando coisas como o consumo fácil, a diversão, o lazer, a possibilidade de adquirir coisas rapidamente, em vez de noções antigas que ajudaram a construir a sociedade, como a do sacrifício e a do trabalho árduo. Algo facilitado pela evolução tecnológica atual.
– As técnicas de informações de hoje facilitam o consumo non stop. Pelo computador você pode comprar tudo: viagem, música, filme.
No mundo da leveza da atual sociedade de consumo, diz Lipovetsky, está-se tentando comprar uma resposta à angústia provocada pela abundância de informações do mundo contemporâneo. Para ele, o resultado dessa ênfase no consumo como um valor identitário provoca um paradoxo que está no cerne do mal-estar contemporâneo.
– Quanto mais a sociedade anda em direção à ligeireza do consumo, mais o cotidiano pesa em nossa existência. O carro na origem era algo que acelerava a vida e a tornava mais leve, mas se todo mundo compra um carro, você enfrenta o peso do engarrafamento. – exemplificou.
Apesar das críticas a esse modelo, Lipovetsky fez questão de dizer que defende uma reforma do modelo, mas que não vê alternativa radical ao atual sistema capitalista. Pelo contrário. De acordo com ele, as virtudes do atual sistema residem nos mesmos elementos responsáveis pela atual angústia contemporânea: liberdade de escolha, melhoria de padrão de vida e desenvolvimento científico e tecnológico.
– Não acredito em uma alternativa para o atual modelo. A sociedade de hiperconsumo não vai parar por um simples chamado ao bom senso. O que pode ocorrer é a construção de novos equilíbrios, como bolsões de desenvolvimento sustentável. Ao mesmo tempo, economias em crescimento estão experimentando agora os benefícios desse crescimento, como no caso da China, e para elas o apelo à redução do consumo soa fora da realidade.
De acordo com ele, a educação seria a chave para que os mesmos fatores responsáveis pelo peso da vida contemporânea possam ser reorientados em uma direção menos prosaica.
– Queremos propor para a juventude objetivos mais elevados do que viajar de férias e ir ao supermercado. Não temos para isso necessidade de um novo modelo, algo que ainda não existe, mas de investimento em cultura e educação para cumprir esse objetivo.
Eduardo Giannetti então assumiu o palco e começou sua palestra referindo-se a um documento que, para ele, forneceu uma chave surpreeendente para pensar a atual sociedade de consumo, a segunda encíclica publicada pelo atual Papa Francisco, Laudato Si'. Mais especificamente, Giannetti centrou sua fala na análise de uma frase em especial contida no texto do pontífice: "Os desertos externos estão crescendo porque os desertos internos se tornaram tão vastos".
Ao falar dos "desertos externos", Giannetti referiu-se a um dos dilemas que considera mais graves na contemporaneidade, a relação da sociedade humana com a natureza. Para ele, muitos dos problemas enfrentados hoje pela humanidade mostram os limites das promessas feitas pela tecnologia. O que leva a um novo paradoxo.
A tecnologia nasce prometendo facilitar a dominação do homem sobre seu ambiente. E o grande paradoxo é que, quanto mais o homem avança no assenhoramento da natureza, mais ele arrisca a perder completamente o controle dela, em fenômenos como a possibilidade de uma crise hídrica planetária ou nos riscos da mudança climática que já está ocorrendo.
Para ele, o modelo da atual sociedade de consumo é inustentável com os recursos naturais disponíveis. Os que estão no topo da pirâmide de consumo querem manter seu padrão, os que está no meio sonham com o padrão do topo, e os que sofrem na base querem ascender ao meio, no que ele chamou de uma "corrida armamentista do consumo", numa analogia com a corrida armamentista clássica da geopolítica.
– Quando um país investe mais do que outro em capacidade militar, o segundo começa a se sentir inseguro e investe em conseguir uma equivalência, mas o primeiro investe mais ainda para manter a superioridade. E o paradoxo da corrida armamentista é que quanto mais ambos investem em segurança, menos seguros se sentem no fim do processo. Ocorre algo parecido com o consumo hoje – disse Giannetti.
Para ele, existem dois tipos de bens de consumo. Aqueles cuja disseminação não faz diferença real para quem tem o hábito de consumi-los, e aqueles que ele chama de "consumo posicional", produtos que simbolizam status e cujo valor "decorre da exclusão dos demais".
– Um jovem ambicioso vai trabalhar no mercado de capitais sonhando comprar uma BMW zero. Finalmente consegue. Se no dia seguinte, ele descobrisse que todos os carros da cidade foram substituídos por carros idênticos ao dele, o valor que ele dá ao carro seria muito menor.
Assim como a ecologia exterior, o "deserto externo" da encíclica do Papa, Giannetti também se dirigiu ao que considera o "problema da ecologia interior".
– A ciência prometeu tornar o homem inteligente. No entanto, com o seu avanço, o que aconteceu é que compreendemos cada vez mais o "como" das coisas, mas sabemos cada vez menos sobre o nosso propósito na ordem do universo. Quanto mais sabemos sobre o universo, mais desprovido de sentido ele parece.
Para encerrar sua apresentação, Giannetti trouxe números sobre a escalada das doenças e distúrbios mentais nos países mais desenvolvidos como evidência de que algo está errado.
– Entre a população de menos de 70 anos, o índice médio de "tempo descontado" por perda de qualidade de vida, morte ou incapacitação relativas a doenças mentais é de 17,4 anos. Contra 15,9 do câncer e 14,8 de problemas cardíacos.
Quando ambos começaram o debate, ficou claro que, apesar das óbvias convergências em muitos pontos, ambos tinham uma discordância central no diagnóstico dos problemas contemporâneos. Giannetti, ecoando algo que já havia escrito em seu livro mais recente, Trópicos Utópicos, disse que vê uma crise de valores no Ocidente, com a imposição de um modelo econômico e social americano que não se sustenta na natureza. Para ele, seria o caso de países como o Brasil aprenderem a se libertar desse modelo e experimentar novas organizações como alternativa.
– Não quero dizer que devemos consertar o mundo ou ensinar a ninguém. Acho que o Brasil deveria ter a coragem de experimentar um modelo em que seu ideal de felicidade fosse mais próximo de coisas que definem o país, e não a aceleração do tempo imposta pelo modelo americano.
Lipovetsky mais de uma vez respondeu que, para ele, não são os valores da sociedade capitalista que estão em crise, até porque não há como mudar o quadro fora deles.
– A forma como conseguiremos limpar o planeta será pesquisando no laboratório combustíveis e materiais menos poluentes.
O Fronteiras do Pensamento Porto Alegre é apresentado por Braskem, com patrocínio Unimed Porto Alegre e Hospital Moinhos de Vento, parceria cultural PUCRS e Instituto CPFL, e empresas parceiras CMPC Celulose Riograndense, Souto Correa, Sulgás e Thyssenkrupp. Parceria institucional Unicred e apoio institucional Embaixada da França. Universidade parceira UFRGS e promoção Grupo RBS.