Com nome de profeta bíblico, carisma de professor e verve de comediante judeu, o escritor israelense Amós Oz fez na noite desta quarta-feira uma palestra sobre política, literatura e intolerância, dentro da série de conferências Fronteiras do Pensamento. Como ele mesmo fez questão de salientar em sua apresentação, foi uma palestra que girou em torno de "meus livros, meu país e minha política".
Oz começou por abordar a circunstância, para ele inusitada, de ser um romancista em Israel, um país em que, nas suas próprias palavras, "muitos leem um romance para ficar com raiva do autor ou dos personagens. E muitos compram e leem o mesmo livro seis vezes para poder rasgá-lo e destruí-lo a cada vez. O que é ótimo para o mercado livreiro", disse o autor, numa amostra do humor sagaz que utilizaria ao longo de toda a conferência.
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Ao mencionar que considerava Israel uma das nações mais individualistas do planeta, com "8,5 milhões de cidadãos, 8,5 milhões de primeiros-ministros, 8,5 milhões de profetas, cada com fórmula para a redenção instantânea e falando sem que os outros escutem", Oz comentou que essa circunstância de certo modo ecoa um gene anarquista histórico presente na trajetória do povo judeu. Para ele, nos "momentos bons", ou seja, sem intolerância, racismo ou fanatismo, a civilização judaica sempre teve um lugar especial para a dúvida, o debate e o humor.
– É uma civilização assentada em um texto antigo, mais suas interpretações, mais suas reinterpretações e até mesmo suas contrainterpretações.
A dúvida, o gosto pela discussão e o humor são características que Oz considera redentoras diante do que vê como a grande praga da contemporaneidade, a ascensão e a reemergência de fanatismos de variadas cores e ideologias, políticas e religiosas, algo a que nem Israel tem escapado. Para ele, essa epidemia tem uma razão simples: confusas diante da complexidade do mundo, as pessoas querem a sensação de que há uma solução fácil.
– Questões como guerra, paz, globalização, multiculturalismo são sempre complicadas, e o fanatismo oferece a solução simples de quem e como culpar por problemas que surgem dessa complexidade. Penso que a nova tentação do demônio nos dias de hoje é a da simplicidade.
Oz estendeu a crítica das soluções simples às análises sobre o conflito entre Israel e Palestina. Para ele, muitos tomam partido sem conhecer os detalhes da questão apenas porque querem se sentir bem alinhando-se aos "bons" em oposição aos "maus" da questão. Ao contrário de muitos outros conflitos na história, contudo, para ele, a disputa entre israelenses e palestinos não é de apreensão fácil e não tem um "lado mau" tão bem delineado.
– Muitos intelectuais engajados ficaram mal acostumados com o século 20, em que foi possível escolher os lados com mais facilidade: Colonialismo ou anticolonialismo. Fascismo e antifascismo, campos de concentração, apartheid, gulags ou a oposição a tudo isso. Israel e Palestina não é conflito preto e branco ou entre certo e errado. É um choque entre dois certos que muito frequentemente se torna um choque entre dois errados.
Para Oz, o que torna o conflito israelo-palestino trágico, no sentido clássico e grego do termo, é o fato de que ambos os povos disputam um território muito pequeno como o único lugar em que podem chamar de seus.
– Palestinos podem viver, e vivem, espalhados pelos países árabes, mas como nação só têm lugar ali. Do mesmo modo, judeus vivem no mundo todo, mas como nação, só têm Israel como único lar.
Por isso, Oz é um ardente defensor da solução de separar o território em duas nações soberanas menores. Para ele, fanáticos e idealistas sem noção de realidade espalharam a ideia de que a concessão é uma fraqueza, o que mina os discursos a favor de um entendimento. E que conceitos bem-intencionados, mas abstratos, como salvação, redenção e amor, não estão lá para ajudar numa questão como essa.
– Eu não acredito em salvação ou redenção, e sim em soluções pragmáticas. No meu vocabulário, concessão significa vida, e o seu oposto é fanatismo e morte. Enquanto jovens hippies diziam para "fazer amor, e não a guerra", eu não concordava com eles, porque o contrário de guerra não é amor, é paz. E o amor é um sentimento íntimo e mais raro. Acho que o verdadeiro slogan deveria ser "faça a paz, e não amor".
Ao evocar um de seus heróis literários, Anton Tchekhov, que também foi médico de aldeia, disse que a ética de um "doutor no campo" era um modelo apropriado para se pensar a questão: a função de um médico diante de um paciente é aliviar sua dor e administrar a cura, não a redenção da alma. Por isso, diz que as soluções que pretendem tornar Israel um único Estado binacional estão fadadas ao fracasso depois de cem anos de guerra e ódio mútuo.
– Sou a favor de dividir a casa pequena em dois apartamentos menores, e passar a uma convivência pragmática entre vizinhos, cumprimentando-se quando ambos se encontram nas escadas. Depois de algum tempo, pode haver uma visita. Um dia, um jantar na casa de um ou de outro, e anos e anos depois, talvez possam fazer alguma coisa juntos. Um mercado comum do Oriente Médio, por exemplo. Mas agora, o primeiro e decisivo passo é haver dois Estados soberanos.
Tal posição não é bem-vista junto a muitos de seus compatriotas em Israel, e ele já foi constantemente chamado de traidor por membros do governo e nomes da extrema-direita israelense. Ele diz que isso não o incomoda.
– Alguns dos meus maiores heróis foram chamados de traidores por contrariarem a opinião de alguns de seus compatriotas linha-dura. Quando me chamam de traidor, tenho vontade de pegar essa palavra e usar na lapela como um distintivo de honra, ao lado da Legion d'honneur que o presidente Jacques Chirac me deu há cerca de 10 anos.
Oz declarou que não acredita em salvação, e sim em soluções, e passou então a definir em que momento se pode separar seu trabalho como romancista de seus textos diretos e incisivos nos jornais, muitos deles extremamente críticos ao governo de seu país.
– Quando escrevo um ensaio ou um artigo é porque estou com raiva, algo me deixou muito irritado. Porém, quando sinto uma propensão de discordar de mim mesmo, ouço mais de uma voz dentro de mim, é sinal de que devo estar grávido de um romance. O que pode não querer dizer nada, já que revelo agora a vocês que minha carreira literária teve muito mais abortos do que partos bem-sucedidos.
Seu romance mais recente, Judas, é uma ampla discussão ficcional sobre alguns temas que o inquietam também como ensaísta. Na visão de Oz, o personagem tido como o traidor arquetípico da cultura ocidental não era um traidor de fato, mas aquilo sobre o que Oz vinha discutindo a noite inteira: um fanático.
– O Judas que eu imagino no romance é alguém que quer a redenção imediata, ele arma a crucificação para que Cristo desça ileso da cruz fazendo o milagre supremo na grande cidade de Jerusalém, e não em alguma aldeia remota. Nesse sentido, ele acredita em Cristo mais do que o próprio Cristo, que tem dúvidas sobre ir a Israel e que sente medo diante da morte.
Oz concluiu comentando que escreve para se imaginar no lugar de outro. Não para ser o outro ou para sentir o que ele sente, mas para entender o outro um pouco melhor. E, no processo, entender melhor a si mesmo. De acordo com ele, sua rotina de trabalho passar por um processo que o ajuda a colocar vários temas em perspectiva. Acorda ainda com a madrugada alta, às quatro da manhã, faz alguns exercícios e sai em uma caminhada a pé pelas ruas de seu bairro. Só depois, às vezes ainda com o céu escuro, volta para casa e começa a escrever.
– Essa caminhada é essencial para clarear a perspectiva. Se na noite anterior ouvi algum político dizendo "nunca" ou "para sempre", caminho e vejo que as estrelas lá em cima estão rindo daquele "nunca", e que o vento que sopra ri daquele "para sempre", e que a noção de eternidade de um homem não é a da própria eternidade.
Durante a sessão de perguntas, conduzida pela mediadora Cláudia Laitano e com a participação do escritor e professor Jacques Wainberg, este último recapitulou a história do profeta bíblico Amós e perguntou por que o escritor escolheu como pseudônimo a palavra "Oz", que significa "coragem", em hebraico. A escolha, de acordo com o autor, volta aos tempos de sua adolescência, quando, em conflito com o pai, um escritor de extrema-direita, o então jovem Amós saiu de casa para viver num kibutz socialista
– Eu precisava de muita coragem para dar aquele salto no vazio. Embora esta minha rebelião, como muitas outras, tenha fechado um círculo. Politicamente, ainda sou oposto ao meu pai, mas ele sempre quis que eu fosse um homem escrevendo em um gabinete cercado de livros, então minha rebelião me levou a fazer hoje exatamente o que meu pai desejava de mim – disse ele.
Ao comentar o livro de memórias De Amor e Trevas, em que Oz narra sua infância passada em Israel e parte de sua adolescência no kibutz, Laitano perguntou se aqueles locais para ele hoje pareciam diferentes do que naquela época. Oz comentou que os kibutzim continuam florescendo no país, e que hoje há mais gente vivendo neles do que no auge popular da experiência, em sua juventude. Eles também diminuíram muitas das restrições algo dogmáticas de seu início. Já Jerusalém continua uma cidade complicada, um "ímã para messias e malucos". Mas a ambivalência que o autor tem com a cidade não se repete com o idioma hebraico com o qual escreve. Para ele, uma das grandes maravilhas da história cultural humana.
– Por 17 séculos, o hebraico esteve tão morto quanto o latim ou o grego antigo. Hoje, é o caso único de um idioma que renasceu e vive, e neste exato momento em que falamos, há pessoas operando computadores, lançando foguetes ao espaço ou realizando neurocirurgias usando esse idioma que precisou criar tantas palavras novas baseadas na estrutura antiga.
O Fronteiras do Pensamento Porto Alegre é apresentado por Braskem, com patrocínio Unimed Porto Alegre e Hospital Moinhos de Vento; parceria cultural PUCRS e Instituto CPFL; e empresas parceiras CMPC Celulose Riograndense, Souto Correa, Sulgás e Thyssen Krupp. Parceria institucional Fecomércio e Unicred, apoio institucional Embaixada da França e Prefeitura de Porto Alegre. Universidade parceira: UFRGS.Promoção: Grupo RBS.