Pensador que tem se debruçado sobre diversos aspectos da contemporaneidade, Gilles Lipovetsky voltará a Porto Alegre a convite do Fronteiras do Pensamento. Participará de um debate ao lado do economista brasileiro Eduardo Giannetti no dia 5 de junho, a partir das 19h45min, no Salão de Atos da UFRGS. Teórico da hipermodernidade, o filósofo francês aborda em seus livros temas como individualismo, ética, moda e consumo.
Professor de Filosofia na Universidade de Grenoble, ele é autor de best-sellers como A Era do Vazio – Ensaios Sobre o Individualismo Contemporâneo (1983), O Império do Efêmero – A Moda e Seu Destino nas Sociedades Modernas (1987) e O Crepúsculo do Dever – A Ética Indolor dos Novos Tempos Democráticos (1992). Lançado no Brasil em 2016, Da Leveza – Para uma Civilização do Ligeiro, seu mais recente livro, aborda o culto contemporâneo à felicidade em contraposição à rotina veloz e exigente que enfrentamos.
Assíduo visitante do Brasil, com diversas passagens pelo Rio Grande do Sul, Lipovetsky conversou com ZH por telefone de Paris a respeito de temas como a busca pelo bem-estar na sociedade pós-moderna, o crescimento da direita no mundo ocidental, o fenômeno Donald Trump e a eleição presidencial deste domingo na França – cuja candidata Marine Le Pen, líder da extrema direita no país, desponta como provável postulante ao segundo turno do pleito.
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No livro Da Leveza – Para uma Civilização do Ligeiro, você analisa a procura atual pela leveza na vida, que no entanto não dispensa a obsessão pela performance da produção e pelo reconhecimento social. Em sua opinião, até que ponto esse paradoxo é sustentável?
De fato, o livro inteiro aborda esse sistema cada vez mais construído para tornar nossa vida mais leve – na técnica, no digital, na desmaterialização, no smartphone, na web, na nanotecnologia –, que também convive evidentemente com todo o mundo do consumo e da mídia, que são instâncias da leveza. Os valores veiculados por eles – o prazer, o divertimento, o lazer – compõem um universo de leveza, mas a vida individual das pessoas continua pesada. Esse paradoxo não é uma contradição, porque essa leveza é resultado da tecnociência e do capitalismo, que demandam a mudança perpétua e, por outra parte, exigem competência na performance. Dentro desse quadro, temos ao nosso redor coisas cada vez mais leves, como as possibilidades de viajar e obter tudo muito facilmente, mas, ao mesmo tempo, o mundo do trabalho e também o privado se endurecem por causa da cultura do individualismo, que empurra o sujeito a sempre se construir, a se inventar. Então, estamos permanentemente fazendo escolhas e nos impondo novos valores para obter sucesso. Por outro lado, o mundo da tradição é muito duro, com miséria, fome, guerra. O caminho das pessoas já está traçado nesse mundo, você consegue compreendê-lo porque a religião e a tradição já estabeleceram o roteiro, você pode prever o futuro com antecipação. Hoje, no mundo da leveza, tudo está aberto, nada é fixo, tudo está por construir. E, como tudo está por construir, tudo é extremamente difícil. Acrescente-se a isso que a globalização provavelmente não é algo passageiro e que a competição e a inovação vão se acelerar ainda mais. Você não sabe mais o que vai mudar amanhã e o que vai permanecer, tanto na economia quanto na vida privada. Voltando ao paradoxo que você citou, nós teremos universos cada vez mais preocupados com a performance para alcançar a eficácia e a riqueza materiais e, ao mesmo tempo, uma vida pessoal mais difícil. É possível continuar a viver assim? Penso que sim, precisamente porque, como no Brasil e em outros países, as pessoas se preocupam menos com a política e mais com a leveza de suas vidas. Por isso o sucesso do budismo, da ioga, do zen, das atividades artísticas. A vida global vai ficar mais difícil, ao mesmo tempo em que as pessoas vão buscar cada vez mais por meios de aliviar o peso de sua vida pessoal com atividades psicoespirituais que funcionam como uma espécie de remédio. Isso vai continuar porque não há alternativa. A novidade do mundo hipermoderno é justamente essa. A modernidade do século 19, por exemplo, tinha um contramodelo que era sociedade burguesa de então. Ela sonhava com o socialismo e a revolução. Hoje, não temos um outro modelo para contrapor. Sabemos apenas que amanhã haverá ainda mais competição. É por isso que o desejo de revolução não tem mais consistência e o que domina, ao contrário, é o desejo de leveza. As pessoas procuram, cada uma a sua maneira, uma forma de aliviar o peso da vida.
Como é possível conciliar essa demanda de aceleração na sociedade de hoje com domínios do conhecimento e da vida que não podem ser mais acelerados do que já estão, como a educação, por exemplo?
A vida de hoje é clivada. Isso quer dizer que uma pessoa que leva durante a semana uma vida de louco em grande velocidade pode mudar de vida no final de semana. Não se trata de uma conciliação, mas de uma combinação, uma hibridação, uma justaposição. Nós temos muitas vidas na mesma vida, ao mesmo tempo, com modelos e ideais diferentes. No passado, a sabedoria era uma atividade que visava mudar completamente o mundo. Hoje, a prática da sabedoria – meditação, zen, desenvolvimento pessoal – não muda a organização do mundo. Ela permite apenas adaptar-se, respirar um pouco. Se você não gosta do seu trabalho, por exemplo, porque é monótono ou o chefe o aborrece, pode reunir-se com os amigos no final de semana e, digamos, fazer música com eles. Você consegue respirar assim. Acho que esse é o modelo do futuro. Não creio na unidade e na harmonia global. Penso que podemos ter momentos de harmonia que se destacam em um universo difícil.
O mundo parece viver um ressurgimento da direita, alimentado por um crescente sentimento anti-imigrantes e anti-Islã. Como essa tendência se relaciona com o que você escreveu no livro Metamorfoses da Cultura Liberal?
O movimento a que você se refere é alimentado pelo medo e pela insegurança com relação ao futuro. Há uma relação com a pergunta que você me fez antes. Porque o crescimento atual da direita não é próprio do mundo todo, mas sim de pessoas que se sentem ameaçadas. São elas que votaram em Donald Trump, por exemplo. Ele foi eleito por pessoas ameaçadas pela globalização. Mas as camadas sociais que estão inseridas na competição internacional não têm essa mesma reação. Evidentemente, a questão é o que vai acontecer amanhã. Não se pode responder a isso de maneira clara hoje porque depende da maneira como as sociedades vão reagir. Primeiramente, se as sociedades não conseguirem criar empregos e, em segundo lugar, se as ondas de imigração não forem controladas, a direita mais dura terá grandes chances de se desenvolver. Mas é preciso ser muito prudente nos prognósticos, porque as coisas mudam, não estão necessariamente escritas no desenvolvimento da hipermodernidade. Voltando a sua primeira questão, pode ser um momento puramente provisório. Não creio que o protecionismo proposto por Donald Trump seja o futuro. Ao mesmo tempo, a abertura das fronteiras e o livre comércio são uma coisa necessária e boa, especialmente para países emergentes como o Brasil, o México e a China. Como o mundo é grande hoje em dia, o movimento protecionista não parece ser agora a figura do futuro. É possível, mas não é certo. Devemos pensar em ter uma sociedade aberta, mas, ao mesmo tempo, é preciso que as nações do Primeiro Mundo sejam capazes de desenvolver um modelo social em que os indivíduos se reconheçam. E penso que, para isso, o sistema escolar é fundamental. Porque, se você tiver elites com pessoal competente e inteligente, capaz de inovar, acho que não existirá esse fenômeno protecionista de que estamos falando. Acho que, quanto mais tenhamos uma sociedade tecnológica, mais precisaremos de uma educação melhor do que antes.
Falando em crescimento da direita, como você vê a situação na França, onde as eleições presidenciais irão se realizar neste domingo?
A França está em uma situação nos últimos 20 ou 30 anos que não é aceitável, porque tivemos governos que não fizeram as reformas necessárias. O resultado é que não fizemos recuar o desemprego. Passamos por governos que tiveram medo de tomar medidas como as que os alemães, por exemplo, tomaram e que permitiram à economia alemã tornar-se extraordinariamente competitiva e eficaz. A França, não. É a mesma coisa com a Itália e os países do sul (da Europa). Não é culpa da globalização, é culpa dos políticos. São os políticos que, por razões eleitorais, não fazem as reformas necessárias. Então, estamos em uma situação na França em que o poder governante, o poder socialista de François Hollande, foi rejeitado pelos franceses como nunca antes. A questão hoje é que a campanha eleitoral é parasitada infelizmente por assuntos morais que tomam o lugar das questões políticas. Se você prestar atenção na mídia e nos jornais, verá que os temas da eleição não dizem respeito à política. Hoje, ninguém pode dizer como essa eleição vai evoluir! Tivemos o Brexit e a eleição de Donald Trump, episódios sobre os quais as pesquisas se enganaram. A situação é muito instável. Então, serei muito prudente como todo mundo (risos). Uma coisa que eu penso, mas posso estar enganado: não acho que Marine Le Pen possa ganhar. Ela pode chegar ao segundo turno da eleição presidencial, mas não vai ganhar. Acredito verdadeiramente nisso. Na minha opinião, a situação da França vem de erros de governos que viviam acima de seus meios via crédito e que não fizeram passar reformas suficientemente adaptadas ao universo aberto da globalização. A França é uma nação que foi feita pelos políticos. Neste país, tudo passa pelos políticos. Esse modelo é intimamente contraditório com a globalização, que é um universo governado pela economia. Os franceses se adaptaram mal a isso. O liberalismo e o mercado viraram sinônimos de satã. O Estado deve regrar tudo por aqui. Isso não é possível, sobretudo no mundo de hoje. Então eu penso que o governo de amanhã deve adaptar nosso país ao universo da globalização.
Por um lado, no mundo hiperindividual, as mídias tradicionais parecem perder cada vez mais o monopólio da informação. De outra parte, a difusão de notícias falsas e o que está sendo chamado de "pós-verdade", tanto na internet quanto na grande imprensa, é preocupante. Qual é a dimensão real da importância dos meios de comunicação na formação da opinião pública hoje em dia?
Eles desempenham um papel enorme. A mídia teve uma importância considerável com o que se passou agora na Grã-Bretanha, porque os ingleses votaram pelo Brexit a partir de fake news. Foram difundidas pela mídia informações realmente falsas. Essa situação é muito mais importante hoje do que há 30 anos ou mesmo no começo deste século, porque, nas democracias do passado, havia um papel capital para os partidos políticos, com quem as pessoas se identificavam. Por exemplo, as pessoas que se definiam como católicas tinham um voto bastante identificável, assim como os operários votavam nos comunistas. Hoje em dia, as pessoas não têm mais confiança nos partidos. É como aí no Brasil, as pessoas rejeitam a classe política e suspeitam dela. Há uma suspeita a respeito de tudo, que é uma situação característica de nossa época. As pessoas não confiam mais nos deputados, nos ministros e também na mídia. A época hipermoderna é de desconfiança. Nos tempos anteriores, isso não acontecia de forma alguma: as pessoas acreditavam que Stalin tinha razão. Hoje, ninguém mais acredita na palavra política. No extremo, temos Donald Trump, que, não importa o que ele diga, as pessoas gostam, porque o que ele diz não é politicamente correto. Ele se endereça às emoções e, nessa situação, as fake news desempenham um papel essencial. É evidentemente grave e sobretudo triste para o futuro da democracia. E novamente vem a questão do quanto devemos investir em educação. Porque não podemos ser regrados pelo controle da informação, mas tão somente pela formação de qualidade dos cidadãos. E essa formação passa pela escola. Caso contrário, as pessoas googleiam, leem os blogs e não sabem fazer a distinção entre os que dizem coisas sérias e os que dizem qualquer coisa. Para ler uma informação é preciso luneta. Você acredita em tudo o que lê? Não é com a reforma da mídia que isso mudará, viu? É preciso algo muito mais profundo, que as nações se conscientizem dos riscos do futuro e formem um corpo de professores competentes, bem pagos e capazes de fazer corretamente seu trabalho para que os cidadãos não caiam na armadilha das fake news.
Isso pode ser entendido como uma recomendação ao Brasil?
Ao Brasil e à América Latina em geral. Olhem ao redor de vocês e vejam que os países bem sucedidos são aqueles que dedicaram um montante considerável de seus orçamentos à educação. Não há mistério. Vejam Cingapura, Finlândia, os países do norte. Todos investiram na formação de qualidade dos professores, no método pedagógico. É o futuro da democracia! Não é apenas a técnica que vai fazer nosso mundo. São os homens. E é preciso formar os homens.
Você já visitou o Brasil muitas vezes. Que papel você acha que o país desempenha na cena mundial?
O Brasil é um país imenso que tem tudo para ser bem-sucedido em termos de riqueza nacional. Mas isso não é suficiente para fazer a prosperidade de um país. O exemplo extremo é a Rússia, que sem dúvida é o país mais rico do mundo, mas é um desastre. Do lado de vocês há a Venezuela, que repousa sobre um tesouro de petróleo e está falida. A riqueza não é suficiente. Acho que o Brasil é bem sucedido em alguns aspectos, mas, como você sabe melhor do que eu, há um grande problema político. O sistema político não avança, há uma corrupção horrível, as pessoas não confiam mais. Dentro desse contexto, acho que é um país que tem uma cultura acolhedora e alegre, mas, ao mesmo tempo, vejo brasileiros muito estressados por causa das dificuldades da vida em um país que poderia ser muito mais bem-sucedido do que ele é. Penso que no Brasil há todos os recursos para se desenvolver, mas, de novo, não basta apenas isso. Mesmo que o Estado e a política sejam menos importantes do que no passado, eles continuam essenciais. É preciso fazer reformas, é preciso justiça e elites políticas de talento. Acho que o problema do Brasil não é a economia. Em primeiro lugar, há um problema considerável no domínio da política e provavelmente também da justiça social, com desigualdades insuportáveis. Isso é evidente: no Brasil, a 200 metros de uma favela há um condomínio de luxo. As desigualdades não são más, não sou contra elas, mas elas não podem paralisar um país. Penso que há um enorme trabalho a ser feito para que os brasileiros acreditem que o futuro é para eles, que devem se esforçar, mas que haverá justiça e que a corrupção, que é um enorme problema, será reduzida.
Você se considera otimista ou pessimista quanto ao futuro?
Ah, me considero um otimista! Penso que a humanidade representa uma aventura na história da Terra de escala excepcional e que, apesar de todas as coisas horríveis pelas quais atravessou desde a pré-história, ela sempre superou os desafios. E por quê? Penso que pela inteligência do homem. O homem é um animal que inova. Ele cria o problema com muita aflição e sempre é bem sucedido em superá-lo. Mas, ao mesmo tempo, ele recria o problema outra vez. O resultado final é que, apesar de tudo, os ideais que amamos, quer dizer, o humanismo, a liberdade, a igualdade, a democracia liberal, são valores cada vez mais partilhados pelas pessoas. Claro que há desigualdades, coisas ignóbeis. O que pode alimentar o otimismo é que, apesar de tudo, cada vez menos pessoas aceitam a escravidão, a dominação das mulheres, a vitimização das crianças. Por fim, temos três séculos de dinâmica da ciência. Sou um homem das luzes, racionalista, herdeiro do século 18. Acredito que a grande conquista da humanidade não é a moral. A moral está muito bem, amo ela como você, não há problema quanto a isso. Mas os grandes problemas, como a poluição, as mudanças climáticas, as desigualdades, exigem inovação, que repousa na inteligência dos homens, formada nos laboratórios, nas ciências, nas universidades. E observo que esse fenômeno explodiu por todo o planeta. Não há um país sequer que não faça pesquisas! A maioria da população do mundo participa hoje dessa inovação. Temos forças em nós, a força do humanismo democrático e da tecnociência. Penso que isso é uma aquisição considerável. Em países desenvolvidos e mesmo no Brasil as pessoas vivem mais, a miséria absoluta recua. Mesmo que haja coisas horríveis, não há por que ocultar que também existem coisas positivas. Não é o paraíso, mas sou otimista porque os valores que nos regem são os humanistas, mesmo que não sejam respeitados. Esses valores estão aí. Em segundo lugar, sou otimista porque usamos a inteligência e a racionalidade para fazer a humanidade progredir em direção a algo mais satisfatório.
*ZERO HORA