Crianças e adolescentes da Vila Pedreira, em Esteio, uma das comunidades com maior índice de vulnerabilidade do Vale dos Sinos, estão literalmente lutando pela cidadania. Pela primeira vez, os moradores da vila foram incluídos no calendário das aulas de boxe oferecidas gratuitamente pela Secretaria Municipal da Cidadania e Desenvolvimento Social. O projeto existe desde 2009 com o financiamento da prefeitura e, junto com a preocupação social, está descobrindo atletas. Desde 2014, quando os jovens preparados no projeto passaram a competir, Esteio conquistou 250 medalhas – 100 de prata e 150 de ouro – nos campeonatos estadual e brasileiro.
Em parceria com o treinador Abílio Mendes, 38 anos, responsável pelo ringue desde 2010, a prefeitura já apresentou o boxe a mais de mil crianças e adolescentes, com idades entre sete e 17 anos. Depois de o projeto percorrer outras comunidades de Esteio por meio da Secretaria Municipal de Esporte, Cultura e Lazer, hoje é desenvolvido no Bairro Santo Inácio e na Vila Pedreira. A meta é expandi-lo para as regiões mais periféricas. Uma vez por semana, a gurizada se reúne para ouvir palestras de esportistas, ex-integrantes do projeto e para praticar o esporte.
– Nosso maior objetivo é tentar pacificar um lugar conhecido pela violência. Quem pensa que a luta incita ainda mais, está enganado. Ela dá foco e ensina o respeito ao próximo – ressalta Abílio.
Hoje, atletas formados no projeto treinam ao lado de alunos no Centro Municipal de Educação, Cultura e Inclusão Social do Bairro Santo Inácio, e acumulam títulos. O maior deles, o vice-campeonato no 71º Brasileiro Masculino Elite de Boxe, na categoria 75kg, conquistado por Thaynô Ferreira, 20 anos, veio no final do ano passado. A única luta perdida pelo jovem iniciado no projeto só ocorreu depois de ser derrotado por pontos para o ex-campeão pan-americano Pedro Álvaro Santos Lima, 33 anos, da Bahia. Thaynô deixou o projeto no início deste ano, mas com a medalha de prata ele garantiu o Bolsa-Atleta, que lhe dará mais chances de se dedicar ao esporte.
Por enquanto, o foco do projeto de boxe de Esteio é dar novas possibilidades a crianças como os irmãos Micaela e Erick Rodrigues, de nove e 14 anos, respectivamente, da Pedreira. Estudante do sexto ano, Erick conheceu o esporte há dois anos, numa oficina do próprio Abílio. Apesar da vontade de seguir no boxe, o menino não teve condições praticar por falta de oportunidade. A chegada das aulas à Pedreira renovou em Erick o desejo de aprender jabás e suas variações. E ele ainda trouxe a irmã para a prática. Sem medo de distribuir socos cada vez mais intensos na manopla, a menina fica atenta aos movimentos do irmão.
– Faz só um mês, mas sinto que estou voltando a ter mais concentração até fora daqui. A gente precisa pensar antes de agir – revela Erick.
Nas aulas da Pedreira, Abílio conta com o auxílio de alunos do projeto. Campeões como o uruguaio naturalizado brasileiro Rodrigo Alexandre Barco Alves, 22 anos, no projeto há nove anos. Bicampeão estadual na categoria 64 kg, ele tem um cartel de apenas cinco derrotas em 35 lutas oficiais. Rodrigo só parou de lutar durante um ano, para concluir o ensino médio. Neste ano, deixou o serviço como instalador de ar-condicionado para se dedicar exclusivamente ao boxe. Quer chegar ao Brasileiro, em dezembro deste ano. Antes, porém, tem o campeonato gaúcho e o sul-brasileiro pela frente.
– Entrei no projeto por ser um guri tímido. Aprendi a ter responsabilidade. Comecei como uma brincadeira e fiz do esporte um sonho para a vida. Venho ajudar no projeto porque quero passar motivação para a gurizada. Eles ficam faceiros ao verem as minhas medalhas, querem ser como eu – conta Rodrigo.
Pâmela e os olhos de tigre
Os 40kg distribuídos em menos de 1,50m de altura são esquecidos quando Pâmela Andriele de Vargas, dez anos, coloca as luvas de boxe para treinar na quadra esportiva da Pedreira. Os olhos miúdos crescem e a guria mantém o foco só nas manoplas seguradas pelos técnicos. Cada soco é desferido com uma vontade que vai além do tamanho da pequena. Nem mesmo a camiseta quatro números acima do tamanho dela atrapalham a agilidade. Levada pela irmã Liasa Vargas, 13 anos, estudante do sexto ano, que também está no projeto, Pâmela é daquelas meninas que aproveita todos os cursos disponibilizados na Vila Pedreira. Participante ativa dos projetos sociais, a menina já fez balé, culinária, jiu-jitsu, capoeira, tae-kwon-do. Agora, quer ser boxeadora.
– Minha irmã contou que estavam inscrevendo as crianças. Pedi, na hora, para também fazer parte. Quando estou aqui, me sinto feliz – garante, antes de seguir golpeando o técnico.
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Organização e respeito ao próximo
Ao acompanhar as lutas de Evander Holyfield e de Mike Tyson, ainda na adolescência, Abílio decidiu que queria se especializar no esporte. Há 15 anos, ele é técnico de boxe pela Federação Rio-grandense de Pugilismo. Hoje, está na vice-presidência da entidade.
Desde 2010, Abílio é o treinador oficial dos projetos de boxe da prefeitura de Esteio e atende a crianças e jovens em situação de vulnerabilidade. E a maior luta do técnico é fora do ringue: convencer as pessoas sobre a importância do esporte como meio de transformação social. Ele defende que o boxe é capaz de tirar a gurizada das ruas. São comuns os relatos de pais que agradecem ao treinador por mudar a vida dos filhos.
– O que esses jovens e adolescentes precisam é de ocupação, fazendo algo que os ensine o respeito ao próximo, a organização e a diversidade – resume.
"Projeto tirou o ponto final da minha vida"
Foi por meio do projeto social desenvolvido pela prefeitura de Esteio que Thaynô Ferreira, hoje com 20 anos, descobriu que a vida o poderia levar a caminhos distantes das ruas, onde viveu durante a infância, ao lado da mãe e de um irmão.Em 2015, ele teve a história de vida publicada no Diário Gaúcho. Órfão de pai, morou nas ruas de Porto Alegre até os oito anos para, depois, viver por cinco anos no Abrigo Municipal de Esteio. Lá, descobriu o boxe no projeto social e fez do esporte o caminho para nocautear um futuro sem rumo.
– Se hoje tenho uma casa para morar e sou um atleta em começo de carreira, devo tudo ao boxe. Ainda busco a ajuda de patrocinadores, mas não desisto nunca – afirma.
No currículo, o jovem acumula 45 vitórias em 50 lutas. Além de ser medalha de prata no campeonato brasileiro na categoria 75kg, Thaynô é tetracampeão gaúcho na mesma categoria. Apesar de não fazer mais parte do projeto social, ele segue no esporte – conta com o apoio de duas academias da cidade, que cedem o espaço para ele treinar ao longo da semana. O jovem também dá aulas particulares de boxe para sobreviver.
– O projeto social tirou o ponto final da minha vida e, no lugar, colocou uma vírgula. Recomecei a partir dali – resume, agradecido.
Aulas de boxe olímpico em Esteio
* CMEB Trindade: Rua José Pedro Silveira, 404, Vila Pedreira. Quintas-feiras, das 14h30min às 16h30min
* CMECIS Santo Inácio: Rua Henrique de Paula Silveira, 13. Segundas e quartas-feiras, das 18h às 19h (alunos de dez a 13 anos) e segundas e sextas-feiras, das 19h às 21h (alunos acima de 14 anos).
* Podem participar crianças e adolescentes, com idades entre sete e 17 anos.
* Para efetuar a matrícula é preciso estar acompanhado de um responsável maior de 18 anos.
* Os interessados podem ir diretamente nos local das oficinas com carteira de identidade ou certidão de nascimento.