Os realizadores de Os Quatro da Candelária (2024), minissérie que estreia nesta quarta-feira (30) na Netflix, tomaram pelo menos quatro decisões corajosas.
A primeira foi a de adotar quatro pontos de vista para reconstituir as 36 horas que antecederam a Chacina da Candelária e o massacre ocorrido no centro histórico do Rio de Janeiro, em 23 de julho de 1993. Nessa data, oito jovens em situação de rua que dormiam na escadaria da Igreja da Candelária foram assassinados a tiros por policiais militares e milicianos. Um dos sobreviventes foi Sandro Barbosa do Nascimento, que, em 2000, protagonizou o sequestro de um ônibus da linha 174 no Rio. Esse caso foi tema do documentário Ônibus 174 (2002), de José Padilha, e da ficção Última Parada 174 (2008), de Bruno Barreto.
Produzida pela Jabuti Filmes e pela Kromaki, com direção de Luis Lomenha, também criador da minissérie, e Márcia Faria, a versão ficcional se desenvolve pelo olhar de quatro crianças e adolescentes negros. A plataforma de streaming disponibilizou para a imprensa o primeiro capítulo, com a história do garoto Douglas, e o segundo, com a de Sete, que está às vésperas de completar 18 anos. Os outros dois protagonistas são Jesus e a menina Pipoca.
O formato narrativo, a julgar por esses dois episódios, evita o risco da repetição e não está interessado na confusão. Não se trata de adotar o chamado efeito Rashomon, termo derivado do filme lançado em 1950 por Akira Kurosawa em que quatro testemunhas apresentam versões dúbias e conflitantes de um crime. O que Os Quatro da Candelária faz é acrescentar camadas dramáticas a cada personagem, traçando um retrato das agruras e dos desafios dessa população marginalizada e invisibilizada (entre as referências estéticas, estão os filmes O Assalto ao Trem Pagador, Pixote e Cidade de Deus, disse Lomenha), estabelecer as relações entre eles e gerar expectativa pelo desfecho de cada trajetória — a morte ou a sobrevivência?
A segunda decisão corajosa foi escalar atores iniciantes para esses papéis: Samuel Silva (que faz o papel de Douglas), Patrick Congo (Sete), Andrei Marques (Jesus) e Wendy Queiroz (Pipoca). Mas o quarteto vai muito bem: há um equilíbrio entre a autenticidade pretendida e a dramaticidade exigida. O elenco inclui participações de Antônio Pitanga, Leandro Firmino, Bruno Gagliasso, Maria Bopp, Stepan Nercessian e o cantor Péricles.
A terceira decisão corajosa foi não pintar os personagens como santos. Eles têm seus pecados, cometem seus crimes, podem ser agressivos. É uma escolha audaciosa em um país onde há muito racismo e que dá muitos ouvidos à expressão "bandido bom é bandido morto". Os Quatro da Candelária não investe em um sentimentalismo barato, não pratica o estelionato emocional. Mas não deixa de comover e de convocar nossa empatia: se estivéssemos no lugar de Douglas, também faríamos tudo o que fosse possível para providenciar um enterro digno ao homem que nos acolheu como o pai que nunca tivemos.
E a quarta decisão corajosa foi se permitir lançar mão da fantasia e do onírico para contrastar com a dura realidade. O trabalho conjunto de Lomenha e Faria com as equipes de fotografia, direção de arte, montagem e trilha sonora cria cenas poderosas, nas quais, pelo menos por um instante, os personagens encontram abrigo, amor, felicidade, pertencimento. Pelo menos por um instante, vivem os sonhos roubados de uma infância desprotegida e, não raro, violentada.
Entrevista com os diretores de "Os Quatro da Candelária"
Na quinta-feira passada (24), participei de uma mesa-redonda virtual com Luis Lomenha e Márcia Faria, os diretores da minissérie Os Quatro da Candelária. A seguir, confira um resumo da entrevista coletiva:
O formato narrativo
Luis Lomenha: Queríamos que todos os quatro fossem protagonistas dessas histórias, que o roteiro fosse uma espécie de (câmera) GoPro no olho de cada um deles. Mas, ao mesmo tempo, a gente queria passar essa ideia de família diferente, de cooperação entre eles, de parceria, de generosidade, e foi aí que a gente encontrou esse formato. A gente pensou em fatos, alguns inspirados em fatos reais, outros completamente inventados, que pudessem se repetir ao longo dos quatro episódios, e que eles pudessem participar de todos esses fatos. Porque são os momentos onde a gente consegue mostrar que eles são um grupo unido e forte. Nos outros momentos, eles estão nos corres individuais de cada um, ou estão nas suas duplas por afeto ou por necessidade, enfim.
Márcia Faria: Quando o Luis me mandou os roteiros e me convidou para dirigir junto com ele, o que mais me tocou foi a escolha do ponto de vista. Você contar a mesma história de pontos de vista diferentes já traz um desafio de direção muito grande, mas tem ainda a escolha de contar pelo ponto de vista de cada criança, o que ela estava vivendo ali, o que ela estava desejando, o que ela estava sonhando, até que chegue no momento fatídico do massacre.
A escolha dos personagens
Luis Lomenha: Havia mais de 70 moradores na igreja, a maioria menor de idade. Eu já tinha feito um documentário sobre mães e familiares de vítimas de chacinas (Luto como Mãe, de 2010). Trouxemos relatos de sobreviventes para a sala de roteiro e fizemos uma seleção de histórias, de desejos, de coisas muito cotidianas. Por exemplo, uma pergunta que a gente fez aos sobreviventes era sobre o tipo de música que ouviam. E eles falavam de um programa aqui no Rio que se chamava Good Times 98, era um programa de música em inglês. Eles ouviam Phil Collins, Nina Simone, artistas que não imaginávamos. Então, a gente trabalhou muito na representação da realidade com o imaginário da fantasia. E esses quatro personagens não só representam os mais de 70 da Candelária, mas a nossa ideia era que eles representassem crianças do mundo inteiro. A gente tinha como referência uma música da Nina Simone, Mississippi Goddam (1964), que fala sobre o assassinato de crianças em frente a uma igreja nos Estados Unidos dos anos 1960. Eu acho que esse conteúdo é universal. E o nosso objetivo foi humanizar e infantilizar os personagens, porque eles foram desumanizados e desinfantilizados. Buscamos devolver a infância e a humanidade a partir dos sonhos que foram interrompidos.
O trabalho com crianças
Márcia Faria: Trabalhar com crianças é um desafio, não só logístico, porque você tem menos tempo de filmagem por questões óbvias, como também é um desafio de interpretação. A gente teve mais de seis meses de sala de ensaio, com dois preparadores, o Tomás Resende e a Valeria Monan, que fizeram um trabalho lindo com essas crianças. Souberam trazer para elas essa realidade dura e, acima de tudo, fizeram com que elas construíssem laços de família. Então, eles se apoiavam uns aos outros dentro da própria filmagem.
A ambientação
Márcia Faria: Lá no começo, houve uma ideia de fazer a série em estúdio, porque a gente tem muita cena noturna e elenco infantil. Mas imediatamente a gente entendeu que não ia ser possível isso, porque a gente precisava da cidade, precisava que a cidade estivesse dentro da realidade da nossa história, porque isso aconteceu na cidade. Uma coisa que eu acho importante dizer é que, no primeiro plano, a minissérie se passa em 1993, quando aconteceu a chacina. Mas o segundo plano é o de 2022, quando a gente filmou. Isso não é por acaso, é uma maneira de a gente subliminarmente dizer que as coisas continuam acontecendo.
Realidade versus sonho
Luis Lomenha: Tem muita coisa surreal que só partiria da mente de uma criança, da inocência da mente de uma criança. O (economista e intelectual) Celso Furtado (1920-2004) falava lá atrás: o maior ativo do brasileiro é a criatividade. A Érica Bolinha e o Snoopy são dois sobreviventes que trabalharam com a gente. A Érica é a criadora da Batalha dos Barbeiros, o Snoopy é um profissional de audiovisual. Quantas vidas interrompidas, por exclusão ou de forma brutal, poderiam estar contribuindo para o desenvolvimento social, humano, cultural, econômico do país?
A personalidade dos personagens
Luis Lomenha: O ser humano tem essa dualidade. Depende de até onde você é testado. Você pode experimentar o amor, pode experimentar o ódio. Essas crianças não tinham outra alternativa a não ser fazer o que elas fizeram. Elas conheceram a violência desde pequena. E também não tem como a gente reduzir isso e culpar os seus pais. A gente traz na série o histórico da construção daquela igreja, no século 17. Como ela foi construída, por quem ela foi construída, a forma com que ela foi construída. Tem um disclaimer na série que informa: o Rio de Janeiro recebeu aproximadamente 3 milhões de africanos escravizados. Esses 3 milhões de africanos escravizados desembarcaram a menos de 150 metros daquela igreja, onde hoje tem um prédio barroco da mesma época, a Casa França Brasil. Antigamente, era alfândega, onde chegavam, entre aspas, as mercadorias. Na sequência, eles eram violentados, estuprados, num lugar que se chamava Beco da Vadiagem. Depois, eles iam para a frente da igreja ganhar alma, porque eles não tinham alma. Mas, ainda com alma, eles continuavam desumanizados. E eu acho que essa é uma história que se alastra sem nenhuma compensação, sem nenhum reparo histórico. A gente tem um reparo histórico no século 21, começando com cotas. Mas temos quatro, cinco séculos quase de descaso. Então, não tem como a gente esperar santos nesse lugar. Até porque, se a gente analisa a história da elite brasileira, não existe povo mais cruel do que a nossa elite. Acredito que essas crianças são verdadeiros anjos, ladrões de galinhas tentando sobreviver e preocupados em manter essa sensação de liberdade, essa sensação de família, de comunhão, de grupo, esse centro de generosidade que eles tinham e de humanidade muito maior do que muitas pessoas que não foram submetidos a esse tipo de violência.
Márcia Faria: A realidade dessas crianças é dura. A realidade da rua é uma realidade dura. Por isso também tem a cola, porque ninguém aguenta, em algum momento você precisa ir para outro lugar porque aquilo é tão desumano, que leva uma criança a cheirar uma cola de sapateiro. Cada um tem seu jeito de fugir daquela realidade. A Pipoca, por exemplo, tem o mundo de sonho dela, como a fábrica de chocolate que ela imagina. Todos eles têm uma válvula de escape. Precisam ter uma válvula de escape. Ninguém aguenta tanta dureza.
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