Estômago 2: O Poderoso Chef (2024), que estreia nesta quinta-feira (29) nos cinemas de Porto Alegre, chocou duas vezes os críticos no 52º Festival de Gramado.
O primeiro choque foi na exibição, no Palácio dos Festivais, do sétimo longa-metragem do diretor paranaense Marcos Jorge, autor de também de Corpos Celestes (2009), Mundo Cão (2016) e Abestalhados 2 (2022, com Marcelo Botta). Boa parte da imprensa ficou espantada com uma decisão tomada pelo cineasta na continuação da comédia criminal-culinária lançada 17 anos atrás e vencedora de cinco troféus no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro: melhor filme, diretor, roteiro, ator coadjuvante (Babu Santana) e escolha do público.
Em Estômago (2007), o baiano João Miguel interpreta o paraibano Raimundo Nonato, que desembarca na cidade de São Paulo com a roupa do corpo e, em busca de abrigo, aceita trabalhar por casa e comida fritando coxinhas em um boteco. Os petiscos caem no gosto dos boêmios que frequentam o local, entre elas a prostituta Iria (Fabiula Nascimento), e logo Nonato irá progredir na vida. Mas como ele narra sua saga de uma cela de presídio, de partida ficamos sabendo que algo ruim ocorreu pelo caminho.
O diretor conta duas histórias em paralelo que têm em comum o uso que Nonato faz de suas habilidades na cozinha para ascender socialmente. Tanto no emprego que arruma em um restaurante quanto no incremento que promove na gororoba servida aos detentos, o que o faz cair nas graças do chefão do xadrez.
Estômago 2 requenta a receita original, mas tira todo o sal e o açúcar ao reduzir o tempo de tela e a importância de Nonato e da gastronomia: ele e a comida se tornam coadjuvantes em uma história de máfia. O curioso é que "o entusiasmo imediato" de João Miguel foi um dos três motivos listados por Marcos Jorge, no Festival de Gramado, para explicar o surgimento desta sequência. O primeiro foi o fã-clube que se criou em torno de Estômago, filme que, em 2015, acabou entrando na lista dos cem melhores do país elaborada pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (ABRACCINE). O terceiro, mas não menos importante, foi a viabilização de uma coprodução internacional.
Por isso os cenários de Estômago 2 se alternam entre a Itália e o Brasil; por isso o filme é falado em dois idiomas, o português e o italiano; por isso o primeiro nome do elenco, nos créditos, é o do genovês Nicola Siri, conhecido por aqui graças às novelas Mulheres Apaixonadas (2003) e Vidas Opostas (2006-2007), visto também nos filmes gaúchos Diário de um Novo Mundo (2005) e Valsa para Bruno Stein (2007).
O filme chega a abrir o apetite em seu prólogo, que cita uma cena clássica de Os Intocáveis (1987) protagonizada pelo Al Capone de Robert De Niro. Siri, na pele de um ator que interpreta um chefão da Máfia, circula às costas dos homens sentados a uma grande mesa. Enquanto vai abrindo os pratos do banquete, o personagem profere um discurso sobre cadeia alimentar que reflete as regras da organização criminosa: traição, como sabemos, é uma sentença de morte.
Logo a seguir, uma versão abrasileirada do concerto As Quatro Estações, de Vivaldi (1678-1741), faz a transição para uma penitenciária do nosso país, onde Nonato cozinha um tortellini à bolonhesa para dois clientes. Um é o líder dos presidiários, Etcétera (papel de Paulo Miklos, menos engraçado do que no primeiro filme), o outro é o diretor da cadeia. A chegada de Don Caroglio (Siri, agora no papel de um mafioso de fato) abala as estruturas do local, e Nonato fica no meio do conflito entre o bandido brasileiro e o mafioso italiano.
Se Estômago 2 fosse concentrado nessa história, poderia ser um filme razoavelmente gostoso. Pelo menos nos momentos estrelados por Nonato. Mas Marcos Jorge acabou se tornando refém de uma ideia, a de repetir a estrutura narrativa do longa original, e do dinheiro dos produtores italianos. Toda a trama rodada no país italiano, onde descobrimos como o ator fracassado e chef de cozinha Roberto se transformou em Don Caroglio, é absolutamente genérica e desinteressante. Ainda que coloque à mesa o binômio sexo e morte, ficou um prato sem sal nenhum. E demorado: dura menos de duas horas, mas a impressão é de que se passou uma eternidade.
Daí que a noite de premiação do Festival de Gramado, em 17 de agosto, tenha sido outro choque para a maioria da crítica. O desacreditado Estômago 2 acabou se tornando o campeão em número de Kikitos conquistados. Foram cinco, dois a mais do que o ganhador do troféu de melhor filme, Oeste Outra Vez, de Erico Rassi.
Um deles foi o do júri popular, muito comemorado por Marcos Jorge: "Faço filmes para o público", disse no palco do Palácio dos Festivais. Os outros quatro foram concedidos pelos jurados — a atriz e cantora Emanuelle Araújo, o ator Samuel de Assis, a cineasta Liliana Sulzbach, a produtora Vania Cattani e o diretor alemão Ansgar Ahlers.
O troféu mais ok foi o de trilha sonora, para Giovanni Venosta. O Kikito mais esdrúxulo foi o de melhor ator, dividido entre Nicola Siri e João Miguel. Não apenas por igualar o protagonista com o coadjuvante, mas também porque Ângelo Antônio (em Oeste Outra Vez) e Felipe Camargo (Filhos do Mangue) tiveram desempenhos superiores. Acho que Carol Tanajura, por Oeste Outra Vez, merecia mais o prêmio de direção de arte do que Fabíola Bonofiglio e Massimo Santomarco. Mas o prêmio que me revoltou foi o de roteiro, para Bernardo Rennó, Lusa Silvestre e Marcos Jorge _ o trabalho de Erico Rassi em Oeste Outra Vez é mais encorpado, oferece diálogos mais saborosos e, ao contrário de Estômago 2, nutre, tem algo a dizer (no caso, sobre a fragilidade e a toxicidade masculinas).
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