A Associação de Amigas e Amigos da Cinemateca Capitólio vai realizar um evento diferente no próximo sábado, 20 de julho, às 16h. Em vez de uma sessão de cinema, a AAMICCA promove um debate sobre relatos literários que abordaram duas enchentes Porto Alegre — a de 1941 e a de 2024.
"O propósito do AAMICCA Convida", diz o material de divulgação, "é trazer autores e autoras que publicaram textos e livros nos mais diversos campos do conhecimento, para que comentem sobre o seu processo de escrita, além de estimular a interação e a reflexão com futuros leitores interessados sobre os temas em foco".
Intitulado "Narrar as Enchentes, Pensar Porto Alegre", o encontro do dia 20 será no Café Mentaleiro, localizado no segundo da Cinemateca Capitólio (Rua Demétrio Ribeiro, 1085, na esquina com a Borges de Medeiros). Os três convidados vão conversar com o público sobre as experiências que tiveram com a inundação na Capital e "a sua transmutação dessa condição extrema para o formato literário".
Julia Dantas é escritora, editora, tradutora e autora dos livros Ruína y Leveza (2015) e Ela se Chama Rodolfo (2022), entre outros. Escreveu o fabuloso texto "A casa alagada", que narra como enfrentou a situação de ter seu apartamento submerso, no bairro Menino Deus. A publicação começa assim:
"'Obrigada por colocar em palavras o que eu não conseguia', me responde a Ana numa conversa sobre uma das incontáveis facetas péssimas dessa catástrofe em andamento. Dias depois ela me pergunta se eu estou pensando em escrever. Naquele momento, eu só pensava no meu apartamento com água pela cintura, sentia meu cérebro frito ou derretido e não conseguia nem ler. Mas ela tem razão, colocar coisas em palavras é um dos meus poucos talentos, e tem sido meu método mais confiável de sobrevivência e de conexão com os outros. Por isso este texto existe, para que meu cérebro volte a se comportar como um cérebro e para criar a possibilidade de que outras pessoas tenham aqui uma organização de palavras que elas precisavam mas não encontravam".
Marta Orofino é doutora em letras pela UFRGS e terapeuta ocupacional. No site Matinal, escreveu o texto "Vai ficar tudo bem! Vai ficar tudo bem?", sobre a internação e o falecimento do seu pai no Hospital Mãe de Deus no mesmo período em que a enchente atingiu a instituição. Ele deu baixa em 30 de abril e, no dia 3 de maio, entrou em sedação paliativa. Leia um trecho:
"Por mais que essa conversa de oferecer pro pai uma abordagem paliativa já estivesse em curso há algum tempo entre a gente — familiares e profissionais da saúde —, o momento da decisão não foi tão fácil. Pra mim, tudo o que sobrou nesta hora foi chorar.
Sem poder acessar o mundo lá fora, o dia se tornou uma intensa conversa pelo WhatsApp. Precisava mais do que nunca compartilhar a narrativa das minhas emoções e sentir o toque da minha rede amorosa.
Assim como o Guaíba, que neste dia chegou em diversos bairros de Porto Alegre, a notícia sobre o estado do pai se espalhou rapidamente. Até que, entre muitas conversas, chega o breve texto de uma amiga: 'Vai ficar tudo bem?…opa, errei o acento. Vai ficar tudo bem!'.
Considero que me empenho para ser uma pessoa exclamativa diante do cotidiano da vida, mas nesse momento, onde a experiência de acompanhar a morte do meu pai pautava os meus próximos dias, imaginei que a interrogação combinava mais: vai ficar tudo bem?".
Rafael Guimaraens é escritor, jornalista e editor. Entre seus livros sobre a história de Porto Alegre, está A Enchente de 41 (2008). Ele também é um dos donos da editora Libretos, que foi diretamente afetada pela tragédia climática. Ele sentiu na pele o que os personagens da obra sofreram há 83 anos, conforme o relato publicado na coluna da minha colega Juliana Bublitz:
"Ilhados em casa, no bairro Menino Deus, ele e a companheira, Clô Barcellos, tiveram de deixar o prédio às pressas, com a água nos joelhos, levando o que podiam. Depois, souberam que o depósito da editora Libretos, fundada pelo casal há 24 anos na Rua Voluntários da Pátria, estava submerso. Situada nas proximidades, a comporta 14 do sistema de contenção do Guaíba não segurou a fúria do Guaíba. A enxurrada invadiu tudo. Doze mil obras literárias foram perdidas, incluindo as cópias da crônica de 1941.
— Tudo foi muito parecido, inclusive a cronologia da tragédia. Nunca imaginei que a gente fosse passar por isso — diz o autor".