O Oscar é superestimado — não é o maior prêmio do cinema mundial, mas da indústria estadunidense. Em geral, falta diversidade nas indicações — não só geográfica, mas também étnica e até de gêneros cinematográficos (o terror, por exemplo, é sistematicamente ignorado). E as escolhas da Academia de Hollywood não necessariamente reconhecem qualidade artística — pesam muito fama e influência, campanhas de marketing, contexto sociopolítico.
Mas há pelo menos um ponto positivo e incontestável: o Oscar dá visibilidade. Sem a premiação hollywoodiana, talvez jamais saberíamos de um filme como Bobi Wine: The People's President (2022), coprodução entre Reino Unido, Uganda e EUA que concorre na categoria de melhor documentário e está disponível na plataforma de streaming Star+.
Aliás, se não fosse o Oscar, é provável que muitos brasileiros nunca tomassem conhecimento sobre o personagem do documentário e a grave situação sociopolítica de Uganda, país localizado no leste da África que se tornou independente do Reino Unido em 1962 e tem cerca de 49 milhões de habitantes. Daí a importância da premiação: colocar em foco temas que podem não estar na pauta cotidiana, abrir mais olhos para o que acontece naqueles lugares aos quais o mundo não costuma dar bola.
Uganda, vale lembrar, é o mesmo país que foi banhado de sangue sob o governo despótico de Idi Amin Dada (1925-2003), entre 1971 e 1979. Esse ditador foi encarnado no cinema por Forest Whitaker, que conquistou o Oscar, o Bafta, o Globo de Ouro, o troféu do Sindicatos dos Atores e o Critics Choice por seu desempenho em O Último Rei da Escócia (2006), ficção baseada em fatos assinada por Kevin Macdonald e também disponível no Star+.
Dirigido pelo britânico Christopher Sharp e pelo ugandense radicado em Los Angeles Moses Bwayo, Bobi Wine: The People's President ganhou o prêmio da International Documentary Association e disputou o troféu do Sindicato dos Diretores dos EUA. Sharp e Bwayo assumiram o risco de serem presos ou até mortos ao registrar a luta de Robert Kyagulanyi Ssentamu, o Bobi Wine, hoje com 42 anos, o mais popular cantor daquela nação africana, para interromper uma das mais longevas ditaduras no planeta.
O general Yoweri Museveni, 79 anos, está no poder desde 1986, quando, à frente do Exército de Resistência Nacional, liderou uma rebelião e promoveu um golpe de Estado para destronar um regime que tornou Uganda um dos recordistas em violação dos direitos humanos. Museveni iniciou um processo de liberalização e estabeleceu acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e empresas de outros países. Mas acabou seguindo a cartilha observada por Félix Maradiaga, o líder da oposição a Daniel Ortega na Nicarágua, em entrevista ao colunista de GZH Rodrigo Lopes: "O poder, por natureza, tende a se expandir e a acumular-se mais, se não for limitado ou regulado. Por desejo natural, uma pessoa no poder não irá se autolimitar. Em muitos dos cenários em que pessoas chegaram ao poder, inclusive depois de terem sido guerreiros da liberdade, rebeldes, encontraram instituições débeis, e diante dessa debilidade, a tentação do poder é perigosa".
A primeira eleição presidencial depois do golpe militar só foi realizada 10 anos depois, em 1996. Museveni venceu e, de lá para cá, vem sendo sucessivamente reeleito. Para perpetuar-se no cargo, manda prender e torturar opositores — inclusive candidatos à Presidência —, reprime à bala manifestações, conta com o apoio do Congresso, que aprova emendas constitucionais a seu favor, e derruba a internet às vésperas das votações, para cortar a comunicação entre os ugandenses e com o resto do mundo.
No documentário, Bobi Wine admite que chegou a admirar Museveni, mas passou a detestá-lo quando percebeu que a violência e a ignorância eram uma política de Estado (assim como a perseguição à população LGBT+, vítima de leis proibitivas). O cantor virou uma grande voz da oposição, com canções de protesto que convidam tanto à dança (misturam reggae, rap, dancehall e afrobeat) quanto à conscientização (as letras, com rimas simples mas grudentas, enfatizam a educação e a liberdade, por exemplo). Em 2017, Bobi elegeu-se para o Parlamento, e em 2019 anunciou que se candidataria à Presidência nas eleições de 2021. O filma acompanha sua campanha, na qual ele várias vezes veste um figurino vermelho militarizado (uma ironia voluntária ou não) e faz um alerta aos países que mantêm negócios com Uganda, como a Alemanha, os EUA, o Japão e o Reino Unido: "Esse dinheiro financia a ditadura de Museveni".
A trajetória de Bobi Wine remete à do advogado Alexei Navalny (1976-2024), retratado no documentário que recebeu o prêmio da categoria no ano passado. Como o maior opositor de Vladimir Putin na Rússia, Bobi tornou-se um fenômeno nas redes sociais e um alvo do governo — foi inclusive vítima de envenenamento. Mas também de agressões, tiros, fraudes, prisões. Mesmo severamente machucado ou sob constante ameaça, o pai de quatro filhos promete não desistir: "A liberdade chega para quem luta, não para quem chora".