Principal nome da oposição ao regime de Daniel Ortega, na Nicarágua, Félix Maradiaga passou 611 dias na prisão, acusado de tramar contra a “independência, a soberania” e de “incitar a ingerência estrangeira”.
Em fevereiro de 2023, ao ser libertado, foi imediatamente deportado, junto com outros 221 prisioneiros políticos, para os Estados Unidos, onde foi recepcionado pela família. Ao chegar lá, soube que perdera a cidadania nicaraguense. Virou apátrida. Como presidente da Fundação para a Liberdade da Nicarágua, tem denunciado, a partir do exílio, o recrudescimento do governo Ortega.
Ex-candidato à presidência, Maradiaga é o primeiro palestrante confirmado da 37ª edição do Fórum da Liberdade 2024, nos dias 4 e 5 de abril de 2024, na PUCRS, em Porto Alegre. Na entrevista a seguir, ele recorda o pesadelo da prisão e ergue a voz contra Ortega, reeleito em 2021 pela quarta vez consecutiva em meio a uma crescente repressão a opositores, religiosos e acadêmicos.
Qual será o foco de sua palestra em Porto Alegre?
Será a deterioração global da liberdade e como as ditaduras estão trabalhando de forma coordenada, no que denomino um ecossistema de ditadores. Vou apresentar alguns elementos sobre os casos de Venezuela, Cuba, Nicarágua e Bolívia. Mas esse é um fenômeno global. Há algumas décadas, esse fenômeno era puxado pelo modelo marxista-socialista. A extinta União Soviética tinha um plano de expansão global, mas colapsou e, de alguma maneira, Cuba se converteu no substituto desse modelo político para manter o socialismo como ponta de lança na América Latina. Nos últimos anos, houve uma inflexão perigosa com a decisão da China de confrontar diretamente os EUA em sua liderança global. Agora, há a combinação de dois fatores: um ideológico, de querer ver o modelo ocidental, as democracias liberais, o livre mercado, o capitalismo, como um modelo decadente; e outro o enorme potencial econômico chinês, que está financiando uma tentativa de contrapoder ao modelo ocidental. Vou explicar minha experiência de 34 anos enfrentando esse regime, praticamente desde minha infância. Fui deslocado de guerra desde muito pequeno: aos 12 anos, tive de sair da Nicarágua, como criança deslocada de guerra. Passei um tempo em um campo de refugiados entre México e EUA e voltei à Nicarágua quando a guerra dos sandinistas terminou. Desde minha adolescência, reúno uma série de esforços para explicar o perigo do socialismo em meu país. Pois o sandinismo voltou ao poder.
O poder, por natureza, tende a se expandir e a acumular-se mais, se não for limitado ou regulado. mesmo rebeldes e guerreiros da liberdade são tentados, diante da debilidade das instituições. Mas há outro fenômeno: a tradição latino-americana de homens fortes.”
Como a sua vida se relacionou com a Revolução Sandinista?
Foi uma relação muito dura, porque minha família nunca se envolveu em política. Nos anos 1970, meus pais eram comerciantes, pequenos empreendedores. A família de minha mãe era de agricultores. Éramos pessoas que nunca nos interessávamos por política, nunca estivemos no governo. Fui o primeiro membro da família que de fato entrou na política. No entanto, meu pai foi perseguido pela ditadura de Anastasio Somoza, de direita, simplesmente porque havia estudado no Chile, durante os anos de Salvador Allende. Ele ficou preso por vários meses. Foi liberado quando descobriram que não tinha nenhum vínculo (com os regimes de esquerda). Cresci vendo a política e a ditadura como algo negativo. Quando o sandinismo chegou ao poder, em 1979, confiscou os negócios de minha mãe. Meu pai morreu, e na cidade onde eu vivia a guerra foi muito complicada. Iniciou-se o fenômeno das crianças soldados. Tantos os “contras”, financiados pelo governo de Ronald Reagan (presidente dos EUA de 1981 a 1989), quanto os sandinistas começaram a recrutar meninos de 15, 16 anos. Minha mãe não queria que eu fizesse parte desse fenômeno perverso e tomou a decisão muito dura de pedir que eu fosse embora do país. Em 1990, quando a democracia voltou à Nicarágua, regressei ao país e fundei a Pastoral Juvenil, grupos católicos que falavam da não violência. No ano 2000, um consórcio mundial de organizações me concedeu um prêmio como jovem mais ativo na promoção de paz. Eu tinha apenas 20 anos. O governo dessa época me colocou como diretor nacional do Escritório de Desarmamento de Ex-Combatentes. Algumas pessoas me consideravam uma espécie de prodígio político. Minha vida inteira foi dedicada aos temas de paz, de não violência a partir de uma ideologia liberal. Estou tratando de levar a luta da liberdade ao território das ideias.
Como?
A premissa que desenvolvi é que qualquer movimento político que recorre à violência é porque não tem razão. A violência é a linguagem dos brutos, daquele que não pode usar a razão e a capacidade persuasiva de suas ideias. Meu encontro com o liberalismo se dá pelo meu amor à paz. Obviamente, tive uma relação intelectual com os movimentos liberais internacionais, sigo pertencendo a diferentes organizações liberais e libertárias, mas meu caminho na política foi essencialmente pelo serviço público. Em 2007, quando saí do governo, fundei a Escola de Liderança da Sociedade Civil, um centro encarregado de treinar jovens sobre conceitos de não violência. A não violência como estratégia para impulsionar políticas públicas e, naturalmente, a mudança de regimes. Em abril de 2018, ocorreram os protestos massivos contra o regime de Ortega. Em 3 de junho, a polícia nacional emitiu um comunicado dizendo que havia uma tentativa de golpe de Estado, negando a realidade. Em 7 de julho, Ortega mencionou meu nome: “Félix Maradiaga é um terrorista, e, há muitos anos, está recebendo dinheiro da comunidade internacional para derrotar o Estado”. Foi a única vez em que Ortega mencionava um opositor com nome e sobrenome. Isso me converteu em um opositor um pouco diferente. Praticamente, tive uma vida clandestina desde 2018. Minha família teve de se esconder, eu sofri um atentado, quando um grupo armado disparou contra o carro que eu dirigia, depois sofri um golpe que me deixou no hospital por vários dias. E a comunidade internacional, com a ajuda da OEA e da Igreja Católica, me evacuaram da Nicarágua. Testemunhei no Conselho de Segurança da ONU no dia 5 de setembro de 2018 sobre o que estava ocorrendo na Nicarágua. Foi a primeira vez que pudemos levar esse caso. O Conselho disse que não era sua competência prestar atenção a minha denúncia, mas se abriu uma porta porque remeteram meu caso ao Conselho de Direitos Humanos em Genebra. Hoje, há um grupo de especialistas dedicados à Nicarágua e que tem feito várias resoluções, entre elas um informe que menciona crimes de lesa-humanidade. É uma vitória jurídica para nós.
O senhor decidiu ir à Nicarágua e acabou preso. Como foi?
Nesse momento, houve uma ordem de captura contra a minha pessoa. Apesar de que eu soubesse que enfrentaria uma situação difícil, depois de passar vários meses no Exterior, explicando o que estava ocorrendo na Nicarágua, decidi regressar em 2019 ao país. Assim que regressei, fui submetido a um sistema de vigilância e a vários meses de prisão domiciliar. Essa situação se manteve até junho de 2021, quando fui levado a uma prisão de segurança máxima, onde fiquei 21 meses. Foi muito desumano, sofri um golpe muito extremo, que me deixou fisicamente debilitado. Passei longos períodos de confinamento em solitária, por interrogatórios abusivos e vários períodos de privação de água, luz solar e alimentos. Por 84 dias, não pude informar minha família sobre onde eu estava. Quando minha irmã pode me visitar e ver a situação física em que estava, isso acabou alertando muito minha esposa. Mesmo eu preso, ela se converteu em uma grande porta-voz da causa. Percorreu o mundo alertando sobre a situação dos presos políticos da Nicarágua. Em 2021, Ortega havia decidido prender não só opositores, mas também sacerdotes. Levou à prisão pessoas que sequer estavam envolvidas em política. Um grupo de mais de 200 foi expulso da Nicarágua e declarado apátridas. Eles nos tiraram nossa nacionalidade e nos confiscaram todas nossas propriedades. Apesar disso, já no exílio, eu decidi retomar o meu trabalho estabelecido na Costa Rica, a poucos quilômetros da Nicarágua, um centro de oposição e trabalho humanitário e político chamado Fundação para a Liberdade na Nicarágua, onde tratamos de fortalecer as capacidades de oposição contra Ortega.
Por que alguns líderes que lutaram contra ditaduras, como Fidel Castro e Ortega, quando chegam ao poder também se convertem em ditadores?
O poder, por natureza, tende a se expandir e a acumular-se mais, se não for limitado ou regulado. Por desejo natural, uma pessoa no poder não irá se autolimitar. E essa é a beleza do modelo republicano, liberal, que assume que não se pode confiar nas tendências humanas ou naturais de um indivíduo ou nessa lógica ancestral de que o caudilho, o líder que, por iluminação natural, vai se autorregular. É um erro. Penso no modelo republicano que crê nas instituições, nas leis, no Estado de Direito, e não nas pessoas. Em muitos dos cenários em que pessoas chegaram ao poder, inclusive depois de terem sido guerreiros da liberdade, rebeldes, encontraram instituições débeis, e diante dessa debilidade, a tentação do poder é perigosa. Mas há outro fenômeno: a tradição latino-americana de homens fortes. Infelizmente, temos uma cultura muito arraigada, em alguns países mais do que em outros, do homem forte. Esse modelo não é exclusividade da esquerda. Às vezes, entramos em conflito também com nossos amigos conservadores de direita. Eu me considero centro-direita, mas às vezes a direita comete o erro de colocar a concentração de poder no indivíduo. Nós liberais e pensadores acreditamos que o modelo republicano é o único sistema que sabe enfrentar, nem sempre com muito êxito, mas ao menos tenta, a limitação do poder.
A população da Nicarágua compreende o que está ocorrendo ou está distanciada do debate político?
A população está totalmente consciente do que ocorre. Mas, durante muitos anos, Ortega, graças à quantidade imensa que dinheiro que recebeu primeiro de Cuba e depois de URSS, Líbia, e, posteriormente de Hugo Chávez, manejou uma quantidade de dinheiro que é inédita para o tamanho da economia nicaraguense. É um dinheiro que não entrou nos cofres do Estado, mas no Partido Sandinista. Ortega conseguiu, como parte dos acordos com os partidos de direita, que mantivesse relações econômicas pessoais com esses indivíduos. Com esse imenso poder econômico, ele conseguiu comprar muitos juízes, altas hierarquias militares. O mais triste de tudo é que conseguiu seduzir e comprar os interesses econômicos de grupos empresariais muito importantes. Esse é outro elemento fundamental que vou tratar em minha fala: a responsabilidade do setor privado, dos líderes empresariais, de atuar sob regras de transparência e de não se associar com finalidades perversas.
Como se deu essa relação entre Ortega e os grupos empresariais?
Quando Ortega voltou ao poder, em 2007, muitos empresários viram uma oportunidade, apesar de terem sido inimigos declarados no passado. Pensaram que era a chance de fazer grandes negócios, de obter contratos com China e Rússia. Partidos democratas, veículos de imprensa e movimentos sociais, estudantis e intelectuais que queriam combater Ortega ficaram sem aliados, porque o setor privado não dava aportes filantrópicos. Isso dava a impressão de que Ortega não tinha oposição. Durante muitos anos houve silêncio cúmplice de certos grupos econômicos. Em 2018, caiu a venda dos olhos das pessoas. Ficou claro que Ortega traiu os empresários. Existe um ditado de que não se pode fazer acordos com o diabo. Mas quando a população se levantou, poucas pessoas imaginavam que o aparato repressivo de Ortega ia responder com tanto ódio. Nos primeiros meses de protestos, morreram mais de 300 pessoas. Franco-atiradores começaram a disparar contra as pessoas que marchavam. Jornalistas foram assassinados, mais de 1,2 mil pessoas foram presas só no primeiro ano dos protestos. Ele respondeu com um nível de violência que, hoje, mais de 10% da população está no exílio. É um número sem precedentes. Não há, na América Latina, nenhum país mais fechado do que a Nicarágua. Nem Cuba, onde pelo menos operam algumas agências da ONU. Na Nicarágua, não existe Cruz Vermelha Internacional. Foi expulsa.
Por que parte da esquerda latino-americana tem dificuldade em ver Cuba, Venezuela e Nicarágua como ditaduras?
Há dois fenômenos. Primeiro, no caso da Nicarágua, é que a Revolução Sandinista dos anos 1980 recebeu muito respaldo internacional da esquerda. Há uma espécie de romantismo, de nostalgia. Embora eu tenha sido crítico dos sandinistas por toda a minha vida, devo reconhecer que, nos anos 1980, eles tinham alguns elementos institucionais. Muito mais do que o modelo de ditadura familiar de Ortega hoje. O segundo fator é que os movimentos de esquerda na América Latina se olham no espelho de Ortega, Maduro, na Venezuela, e Diáz-Canel, em Cuba. Reconhecer que as esquerdas correm sério risco de se deformar nesse tipo de regime é, de alguma forma, reconhecer que suas propostas são falidas. A esquerda na América Latina tem propostas obsoletas, falidas, que não têm muito sentido para sociedades com aspirações democráticas.
A nova ordem mundial que a China deseja estabelecer, com Rússia, Irã, Coreia do Norte, reconhece que é preciso um discurso atraente. Por isso, são ditaduras 2.0. querem elementos do capitalismo que joguem a seu favor, Não gostam da liberdade de imprensa, mas querem usá-la.”
China, Cuba e Venezuela são ditaduras de esquerda. Mas Ortega também se inspira na Rússia, que tem um regime autoritário de direita. Não é só uma questão ideológica.
Exatamente. As raízes que encontramos vêm da URSS, que desejava uma nova ordem mundial, queria um mundo bipolar: um capitalista, um modelo de luta de classes, e a narrativa de que, do outro lado, estava o lado socialista, onde os trabalhadores estavam no poder. Na nova face das ditaduras que estamos vendo há um elemento hereditário desse pensamento soviético, que é a bipolaridade. Isso sobrevive. É basicamente o mundo ocidental capitalista controlado pelos EUA e, do outro lado, uma ordem mundial encabeçada pela China. A Rússia, sobretudo depois da invasão da Ucrânia, não tem nenhuma capacidade de liderar esse novo mundo bipolar. A diferença é que essa nova ordem mundial que a China deseja estabelecer, com Rússia, Irã, Coreia do Norte, reconhece também que é necessário um discurso atraente, que possa de alguma forma enraizar-se na maioria da população. Por isso, são ditaduras 2.0. Criticam o capitalismo, mas querem o capitalismo. Não gostam da liberdade de imprensa, mas querem utilizá-la. Aproveitam as possibilidades da internet, da tecnologia, da imprensa livre para gerar propaganda. Isso faz com que, em alguns casos, utilizem linguagens e símbolos que antes eram próprios da direita. Não querem regressar ao modelo socialista soviético porque esse é um modelo que economicamente não funciona, que foi um fracasso. Então, querem elementos do capitalismo que joguem a seu favor, mas um capitalismo sem liberdade. Elementos da imprensa e da cultura, mas sem liberdade. Construíram um híbrido muito perigoso porque, atrás disso, há um desenho muito bem feito de controle das narrativas. Há um aparato de propaganda, midiático, e o aproveitamento da deterioração de instituições ocidentais. Em alguns países, isso implica atacar valores tradicionais, em outros é completamente o contrário: utilizar essas tradições ou o ódio ou ressentimento ou os conflitos locais como mecanismo para erodir a liberdade. Outra característica perigosa dessas modalidades de autoritarismo global financiado pela China é o uso de tecnologia avançada, que viola a privacidade dos indivíduos. Estamos falando de uso de vigilância das redes sociais, violação da privacidade, inteligência artificial. São ditaduras que estão usando de muita sofisticação. A segunda característica é que estão sendo erigidas sobre indivíduos carismáticos. Os modelos soviéticos clássicos partiam do que Lenin chamava da Teoria da Vanguarda: identificar um grupo de pessoas iluminadas e colocá-las nos partidos políticos para impulsionar a revolução socialista. Estão construindo modelos altamente personalistas. Já não importa o partido, o politburo, mas o indivíduo iluminado. Isso é um modelo muito próprio da China.
O senhor também percebe esses elementos em democracias consolidadas, como nos EUA durante o governo Donald Trump?
É algo que me preocupa profundamente. Como líder político no exílio, trato de focar e dedicar toda energia ao tema da Nicarágua, mas obviamente não posso deixar de prestar atenção na deterioração da democracia. Insisto: já não é uma luta entre socialismo de esquerda e capitalismo de direita. É uma luta muito mais complexa, e mesmo democracias sólidas não estão alheias desses mesmos perigos.
O senhor pensa em voltar à Nicarágua e de novo tentar a presidência?
A presidência não é e nunca foi um objetivo fundamental. Lancei minha candidatura porque considerei que, devido às circunstâncias, teríamos de utilizar meu movimento para poder estruturar um movimento capaz de explicar nossas ideias. Tenho visto a política como uma ferramenta para a luta pela liberdade. Não como posição ou ou título. Minha missão de vida e pela qual vou consagrar todos meus esforços até meu último suspiro é ver a Nicarágua livre e, oxalá, a América Latina também livre de ditaduras.