Há uma cena recorrente em Poucas e Boas (Sweet and Lowdown, 1999), subestimada comédia de Woody Allen que acaba de ser resgatado do limbo digital pelo Amazon Prime Video. Emmet Ray (papel que valeu a Sean Penn uma indicação ao Oscar de melhor ator e ao Globo de Ouro da mesma categoria) diz as coisas mais indelicadas que uma mulher pode ouvir de um homem. Depois, dedilha sua guitarra com uma delicadeza encantadora.
Poucas e Boas é uma das biografias ficcionais de Allen, que trilhou enfaticamente esse caminho no clássico Zelig (1983). Para dar um tom de documentário, mas também para satirizar as convenções do gênero, o cineasta acrescenta depoimentos de historiadores e críticos.
Emmet Ray seria, segundo ele próprio, o melhor guitarrista de jazz dos anos 1930. Quer dizer: o melhor depois de Django Reinhardt, um cigano europeu que toca tão bem que faz o nova-iorquino chorar ou desmaiar.
Django é o fantasma de Emmet — e ao mesmo tempo o único personagem real de Poucas e Boas. Nascido na Bélgica em 1910, Django perdeu dois dedos da mão esquerda num incêndio e, na década de 1930, formou com o violinista Stéphane Grapelli um quinteto fantástico. Melódico e suave, é, para muitos, o maior guitarrista da história.
Allen celebrou o ídolo através de um tipo farsesco. Vencedor do Oscar por Sobre Meninos e Lobos (2003) e Milk: A Voz da Igualdade (2008), Sean Penn arrasa como o malandro de bigode, barriga saliente e terno branco. Seu Emmet Ray tem um ego gigante e um coração fechado, é cleptomaníaco, beberrão, mulherengo, autoritário e adepto de hobbies bizarros, como atirar em ratos e ficar olhando os trens. Seu talento e sua genialidade musicais compensam as más atitudes? É possível separar o artista da obra? (Uma pergunta que, para muita gente, vale para o próprio Woody Allen, desde que voltaram à tona as acusações de Dylan Farrow, filha adotiva do diretor e da atriz Mia Farrow: ela diz ter sofrido abuso sexual em 1992, quando tinha sete anos.)
Numa das turnês de sua banda, Emmet conhece Hattie (Samantha Morton). Acostumado a falar muito de si próprio, ele demora a perceber que a moça é muda. Aos poucos, aprende a aproveitar os momentos ao lado da pobre e devotada Hattie — uma interpretação chapliniana que valeu a Samantha Morton a indicação ao Oscar e ao Globo de Ouro de melhor atriz coadjuvante (depois, ela competiria como melhor atriz por Terra de Sonhos, de 2003).
A natureza de Emmet o força a deixar Hattie. Ele se casa com Blanche (Uma Thurman), escritora metida a psicanalista, que fala demais e tem ligações com a Máfia.
Num dos diálogos impagáveis de Poucas e Boas, Blanche sugere a Emmet que sua admiração por trens seria um desejo de voltar à infância. O guitarrista, que equilibra a sensibilidade artística singular com a grosseria nos modos, responde:
— Acho que você quer transar com o trem.