Quem acompanhou mais de perto os Jogos Olímpicos na semana passada, provavelmente ficou sabendo de uma das polêmicas que envolveu o boxe feminino e que acabou virando pauta política não só no Brasil, mas em diversos países que enviaram delegação para Paris.
A polêmica acabou centralizada, principalmente, na boxeadora argelina Imane Khelif, após uma vitória nas oitavas de final contra uma boxeadora italiana, que desistiu após 46 segundos de luta. Ela tornou-se vítima de uma campanha de ódio, machismo e racismo nas redes sociais com publicações, em sua vasta maioria atribuídas à extrema direita, afirmando que ela era "um homem lutando contra mulheres".
Apesar de estar em alta agora, tudo começou em 2023, no Mundial de Boxe na Índia. Imane Khelif foi desclassificada após as semifinais do torneio pela Associação Internacional de Boxe (IBA, na sigla em inglês), que atribuiu a desclassificação da atleta por não ter passado em um "teste de elegibilidade de gênero", sem conceder maiores detalhes ou evidências.
A IBA, inclusive, foi retirada da organização do torneio olímpico de Paris neste ano por falta de transparência e não é mais uma federação reconhecida pelo Comitê Olímpico Internacional (COI). Porém, ainda assim, se deu ao trabalho de endossar uma campanha de ódio a uma atleta em plena Olimpíada.
Acontece que Imane é uma mulher cisgênero. Ela nasceu mulher, foi criada como mulher e, por óbvio, compete com mulheres. Inclusive, ela já está há muito tempo competindo no boxe: participou da Olimpíada de Tóquio, em 2021, e ficou na quinta colocação, sem problema algum. Não só isso, Imame vem de um país onde a homossexualidade é proibida por lei e não respeita e nem reconhece direitos civis da comunidade LGBT. Não parece crível que a Argélia mandaria uma atleta trans como representante nos Jogos Olímpicos.
O COI se pronunciou em defesa da atleta, apoiando sua presença em Paris e dizendo que "todas as competidoras respeitam as regras de elegibilidade para as competições" e o próprio presidente do comitê, Thomas Bach, disse que é totalmente inaceitável o discurso de ódio dirigido à boxeadora. Mas já era demasiado tarde. O estrago já estava feito.
É inadmissível que em pleno Jogos Olímpicos atletas sejam atacados. Nesse caso é pior ainda, pois foi motivado por uma notícia falsa. Isso assusta, porque é um exemplo do quão danoso o ambiente online pode ser caso não tenhamos cuidado com o que compartilhamos e lemos.
Por um lado, consigo ver essa campanha com uma motivação política por trás — atacar a existência de pessoas trans —, mas por outro vejo uma falta de cuidado de muitas pessoas ao compartilharem notícias sem checar sua veracidade, o que é igualmente perigoso.
Imagino como deve ter sido para Imane esta semana, milhares de desconhecidos atacando e questionando seu gênero em um momento que deveria ser um dos mais especiais da carreira dela. Um psicológico forte ela com certeza tem, mas são em momentos como esse que os atletas estão mais perto de quebrar. Não seria surpresa se ela pedisse para se retirar dos Jogos dada à situação. Mas ela não o fez. Pelo contrário, continuou lutando.
Imane é uma atleta exemplo para todo e qualquer atleta. Teve de superar inúmeras dificuldades por decidir praticar um esporte que não era muito popular para as mulheres argelinas e enfrentar o próprio conservadorismo de sua família e vilarejo para perseguir seu sonho. E, nesta terça (6), ela estará na semifinal do boxe até 63kg. Ou seja, já garantiu pelo menos uma medalha para o seu país.
Torço para que ela ganhe o ouro e continue nos inspirando.