O que está nos seus planos quando se aposentar? Viajar? Estudar? Seguir trabalhando com o que gosta? Quando muitos ainda acrescentam que pretendem dedicar-se a "projetos pessoais", tudo isso ao mesmo tempo pode ser aplicado ao biólogo, fotógrafo diletante e professor Vitor Hugo Travi, 70 anos.
Há uma década, ele deixou as atividades como docente nos campi de Canela e Bento Gonçalves da Universidade de Caxias do Sul (UCS), onde atuava nos cursos de Turismo _ antes, havia dado aulas de zoologia no Instituto de Biociências da PUCRS e na mesma área na UCS — para dedicar-se a um projeto bem pessoal.
Como professor, desde o início dos anos 2000 Travi ministrava lições práticas em São José dos Ausentes, nos Campos de Cima da Serra. Percorria em um ônibus as estradas de chão com 30 ou mais pupilos para aprender e ensinar com as então incipientes experiências de turismo. Encantou-se de tal forma que, após deixar o magistério, ao invés de pendurar as chuteiras, nos últimos cinco anos palmilhou aquele vasto território de cânions, campos, coxilhas e matas de araucárias e pinus. Seu projeto — que mistura biologia, turismo, fotografia, texto e encontros pessoais — levou-o a três aventuras na região. Uma delas, a primeira, está por virar livro até meados deste ano.
E se, andando pelas fazendas do interior de Ausentes, que apoiam e ajudam a patrocinar seus projetos, você ouvir falar no "professor", não tenha dúvidas, é de Vitor Hugo Travi que estão falando.
Um ano no topo do Rio Grande
O título não é retórico. Em Ausentes está o ponto mais alto do RS, com 1.403 metros, o Pico do Monte Negro, ao lado do cânion de mesmo nome. Seu entorno era o interesse de Travi, que queria sentir a região nas quatro estações. A intenção era "andar, ver, fotografar e escrever". Os escritos começaram a ser compilados em crônicas semanais pelo jornal Nova Época, de Canela. E mais um gosto surgiu: escrever de forma não acadêmica.
No início de cada estação lá estava o professor. No primeiro dia do inverno de 2016, o termômetro marcava -4,5ºC, e a paisagem era incrível. Travi fez levantamentos da fauna, da flora, da geografia, traçando um panorama dinâmico de cada ponto num raio de 5 quilômetros do Monte Negro. Dos 365 dias do ano, passou ali cerca de 100.
Como não é especialista em todas as áreas, valeu-se de colegas ao perceber particularidades. O que mais o surpreendeu, acompanhando todos os ciclos, foi a diversidade e abundância de plantas herbáceas de até um metro de altura. E, apesar da polêmica das queimadas controladas, típicas da região, notar que, na primavera, o campo explode em cores, formas e vida. De forma negativa, ficou a percepção de que há pouca fauna nativa, por o clima ser hostil, ainda mais próximo das bordas — além do Monte Negro, há pelo menos mais quatro cânions no município. É, como ele diz, o preço da beleza.
Foi aquela beleza toda, que obriga o visitante a dar meia volta ou a esperar quando se forma a neblina que esconde os paredões de pedra, que o levou a pensar no segundo plano: por que não viver isolado por um tempo, na beira de um dos cânions, e escrever um relato mais pessoal ainda?
A borda
Não era um acampamento. Havia água, luz, internet por satélite e um certo conforto no interior do contêiner de 30 metros quadrados que Travi alugou. À borda do Cânion da Coxilha, mais curto e campestre do que os outros, a moradia pertencia a um casal catarinense e comportava quarto, banheiro, sala e despensa.
Antes de se popularizar o turismo de isolamento, Travi decidira praticá-lo a 1.230 metros de altitude, em março e abril de 2018. Era um lugar perfeito para a introspecção e a escrita. Na solidão, aprofundou leituras, estreitou a relação com a natureza e criou vínculos com animais que o rondavam, graxains e siriemas entre eles. E descobriu que é fantástico viver sozinho, desde que a pessoa se proponha, ainda mais naquelas condições climáticas. Houve momentos em que choveu tanto, mas tanto, que por quase uma semana nem conseguiu sair do contêiner.
Ficou sem ver uma única pessoa por dias a fio, só pequenos vultos, ao longe, de peões recolhendo o gado. A esposa de Travi, também professora, ficava preocupada, mas apoiava, assim como os filhos, um biólogo e uma veterinária. Se tranquilizavam quando ele recebia a visita do pessoal de uma fazenda próxima, convidados a experimentar os cogumelos que ele recolhe nas florestas de pinus e prepara — porcini e lactarius, dois de uma dezena de tipos encontrada na região, a maioria não comestível.
Ainda que não fosse o objetivo, não deixava de observar a natureza. Tudo registrado com o equipamento que aprendeu a operar na prática — usa uma câmera profissional, mas, dependendo do caso, vale-se do celular. Também esbaldou-se registrando o céu livre de poluição luminosa em noites de lua nova, um dos preferidos pelos praticantes de astrofotografia. Nunca havia visto tanta estrela.
Vale do Rio Silveira
Depois de ter sobrevivido a uma forma grave de covid, em julho de 2020, em março do ano passado Travi desafiou-se a uma nova aventura: percorrer o Vale do Rio Silveira. Ele "nasce pouco ao sul do cânion Boa Vista, em São José dos Ausentes, e termina mergulhando nas águas claras do Rio Pelotas, na divisa com Santa Catarina". O projeto acaba de ser encerrado, mas não quer dizer que ele não volte. Tem muita coisa pra conferir ainda ao longo dos 72 quilômetros do sinuoso Silveira.
É que sempre aparece uma novidade, como as esponjas que ele só viu depois de muito andar, e pediu para uma colega especialista identificar após a coleta nas pedras do rio lajeado e pontuado por cachoeiras. Considerados os animais pluricelulares mais primitivos, as esponjas, explica Travi, são exigentes em termos de qualidade da água onde habitam, com pouco ou nenhum poluente. A qualidade da água, a geografia do vale e o leito que permite caminhadas no rio o encantam. Há lugares que considera extraordinários, como uma margem em que há mata fechada e, na outra, campo, "como se fosse uma combinação". É uma coreografia o que o rio faz, resume.
Ele não está interessado só no Silveira. Percorre, registra e analisa o entorno, a vila que leva seu nome, o que já existe de turismo, as atrações naturais como o Cachoeirão dos Rodrigues e o Desnível dos rios Silveira e Divisa. Faz os trajetos caminhando, para sentir mais a natureza. Vai sozinho, para não se distrair e para apurar o ouvido. Nos intervalos das saídas de campo, escreve.
E já ensaia uma outra aventura. Por enquanto, uma dica com o nome e o local: "Os papapinhões", em Urupema (SC), do outro do lado dos cânions por onde trilhou nos últimos cinco anos.
Site e visitas
Com o filho, também biólogo, Vitor Hugo Travi fundou e administra a Pampeana Produções Ambientais, dedicada a estudos ambientais há mais de 30 anos. Em 1992, criou o Loboguará, programa de Educação Ambiental em Canela. Há uns 15 anos, mantém ainda um curso de identificação de cogumelos comestíveis com o professor Jair Putzke, doutor em Botânica pela UFRGS, especialista em fungos e autor do primeiro guia de cogumelos do país. Travi também acompanha grupos de no máximo 10 pessoas em visitas a Ausentes, em parceria com Edinaira Lopes, para caminhadas com interpretação ambiental. Mais informações em vitorhugotravi.eco.br