Cinema mudo me remetia a manhãs de sábado de chuva pós-escola, quando algum canal de TV exibia filmes do genial Charles Chaplin. Passaram-se décadas até que, há uns poucos anos, em Buenos Aires, topei com uma sessão de O Garoto, do mesmo Chaplin, exibida no clube de jazz Notorious. A proposta era a exibição do filme mudo com acompanhamento ao vivo pelo pianista, compositor e cantor Juan Nevani. Teria encarado qualquer outro programa musical para conhecer o já tradicional bar portenho e, sem maiores expectativas, acabei arrebatada pela performance extraordinária.
E foi assim, também sem muitas pretensões, que tentei reviver a experiência no último domingo ao me acomodar no auditório da Fundação Iberê Camargo para assistir a Um Homem com uma Câmera, com trilha sonora composta e executada ao vivo por Vagner Cunha, com participação de Ernesto Fagundes. O longa-metragem do russo Dziga Vertov, de 1929, eu desconhecia. E igualmente ignorava o trabalho de Cunha. De cara, pensei que aquela hora e pouco resultasse interminável. Mas bastaram as primeiras cenas e os primeiros acordes para perceber que seria uma pena que o tempo passasse tão rápido.
O incrível foi a forma como os músicos seguiram o ritmo que o autor do filme parece ter querido dar a ele.
O filme tem cenas ousadas para a época – tanto do ponto de vista estético quanto do que mostra ou representa. Não há uma história ou narrativa linear. Retrata um dia qualquer numa cidade da antiga União Soviética, captado pela câmera de um homem, e as imagens se revezam entre as que ele mesmo registra e as que o mostram em ação – no meio do trânsito de bondes e de uns poucos carros, frenético para então, do alto de um prédio, ou içado perigosamente por cabos.
Da vida cotidiana, há curiosidades como garotas em roupas de banho de duas peças (o biquíni não é de décadas depois!?) ou a crueza de um parto, a pobreza de crianças e mendigos na rua, o glamour de privilegiados passeando de carro e a alegria de recém-casados.
Fiquei pensando se o filme, por si só, sem intertítulos ou cartazes típicos do cinema mudo daquele tempo, conseguiria me prender tanto quanto o fez a música de Cunha. Ele mesmo explicou, em uma entrevista a um colega, que, por ser um trabalho complexo para ser executado só por uma pessoa, haveria uma parte pré-gravada com instrumentos orquestrais e percussões africanas e asiáticas, e outra executada ao vivo por ele, no violino, e por Ernesto Fagundes com seu inseparável bombo.
O incrível foi a forma como eles seguiram o ritmo que o autor do filme parece ter querido dar a ele. Na entrevista referida, Cunha antecipava assim seu trabalho:
– A imagem é muito forte e a trilha não pode estar acima da imagem. Eu tento ser coadjuvante na história. Não posso ser protagonista de um filme que é tão forte. Eu preciso estar a serviço da imagem.
E foi incrível como ambos conseguiram isso. Ao final, aplaudidos de pé pela plateia naquela tarde gelada, os músicos estavam com a roupa empapada de suor, tamanho o esforço da performance – mas, como havia prometido o compositor, sem que se tornassem protagonistas.
Para quem, como eu, temia pelo destino da Fundação Iberê Camargo, de portas abertas nos últimos anos só aos sábados e domingos, foi um alento presenciar um espetáculo de tal qualidade em um de seus tantos “palcos”. Sei que já houve outras sessões, com diferentes filmes e músicos, e espero que continuem ocorrendo muitas mais. Pela fundação e, principalmente, por nós.