Há filmes que não saem da memória do público, há filmes que melhoram com o tempo, há filmes cuja importância é de fato reconhecida bem depois de seu lançamento. E há Um Homem com uma Câmera (1929), caso raro em que tudo isso parece pouco para definir sua dimensão histórica.
O longa "mudo" do russo Dziga Vertov (nascido em território hoje pertencente à Polônia) será exibido dentro da ótima programação cinéfila dominical da Fundação Iberê Camargo, às 16h deste dia 24/6, com entrada gratuita e trilha sonora composta especialmente para a ocasião e executada ao vivo por Vagner Cunha, com participação de Ernesto Fagundes. A sessão é imperdível: permite conhecer a obra que sintetiza um pensamento utópico em sua tentativa de reproduzir o real na tela, mas ao mesmo tempo exitoso à medida que escancara a emancipação da linguagem do cinema.
Um Homem com uma Câmera se inicia deixando claro essa intenção, com letreiros que avisam tratar-se de uma proposta que se afasta definitivamente do teatro e da literatura, inclusive "sem uma história" e "sem as cartelas" que costuravam as narrativas dos filmes então sem diálogo. Seguem-se variadas imagens da vida na União Soviética, algumas delas costuradas por meio de ousadias para a época, como as sobreposições e os cortes muito rápidos.
A complexidade da proposta se deixa ver mesmo pela sucessão entre os planos que representam o olhar do espectador e aqueles que mostram "um homem com uma câmera" em meio ao cenário – ora vê-se um registro do real, ora como este foi capturado.
O cinema é o real, porém, em outra dimensão – revelada pelo olho maquínico da câmera. Essa é a base sobre a qual se sustenta não só a teoria documental (à qual Vertov, criador da expressão cinema verdade, é usualmente associado), mas o cinema como um todo, em sua capacidade inigualável de criar realidades.
É como se Vertov reunisse, nesse seu filme-manifesto, todas as vertentes teóricas dos primórdios da linguagem – do frisson e da fotogenia observados por Delluc à capacidade inventiva que deu status de arte aos filmes, conforme Canudo, passando inclusive pela teoria da montagem de Eisenstein, apontado como seu desafeto.
Vertov subverteu ideias de Eisenstein, paradoxalmente, aproximando-se da vida cotidiana soviética e fazendo uso de um encadeamento experimental de imagens.
Não é esse jogo entre o real e a sua representação, entre o registro mais cru e a fantasia, um dos segredos da magia do cinema?