Se você viaja para qualquer lugar do Brasil e pelo sotaque alguém reconhece sua origem, o mais provável é que pergunte se está tudo bem agora no nosso Estado. Três meses depois da enchente, a resposta sincera, mesmo que a sua casa não tenha sido alagada é: “Não, ainda não está tudo bem”.
Se o interlocutor quiser saber por que não está tudo bem é melhor pedir um café e avisar que a prosa será longa.
Não, não está tudo bem porque ainda temos famílias em abrigos ou acampadas à beira da BR-116, nas ilhas de Porto Alegre, porque perderam as casas e não têm para onde ir. O governo federal tem 2 mil casas ou apartamentos de até R$ 200 mil cadastrados por interessados em fazer negócio, mas precisa que as prefeituras mandem a lista das famílias que perderam as casas. Três meses depois, pouquíssimas mandaram o relatório completo.
Não, não está tudo bem, porque temos dezenas de escolas estaduais e municipais fechadas ou funcionando de forma precária, com prejuízos para os alunos.
Não, não está tudo bem, porque o Aeroporto Salgado Filho segue fechado para pousos e decolagens. As obras andam a passos lentos e a previsão de reabertura (parcial) é somente em 21 de outubro. Enquanto isso, quem precisa viajar corre o risco de levar 23 horas para ir de Porto Alegre a São Paulo e isso não é uma metáfora. Passageiros de um voo que deveria sair de Canoas, mas o avião não conseguiu pousar por causa da neblina, foram levados para Florianópolis, sem garantia de embarque no mesmo dia. Alguns levaram o tempo de uma viagem ao Japão para ir de Porto Alegre a São Paulo. Outros perderam o compromisso e tiveram de encarar mais sete horas de ônibus de Floripa para Porto Alegre.
Não, não está tudo bem, porque o Trensurb ainda não voltou a operar plenamente. Quem quer chegar ao centro de Porto Alegre precisa descer na Estação Mathias Velho em Canoas e fazer o restante do trajeto de ônibus. Na volta, a mesma coisa. A previsão é de que a retomada só ocorra em meados de setembro.
Não, não está tudo bem, porque a maioria das cidades atingidas pela enchente ainda tem montanhas de lixo empilhado, sem que se saiba o que fazer com esse entulho.
Não, não está tudo bem, porque cidades como Eldorado do Sul não conseguiram sequer indicar um lugar seguro para o governo do Estado montar aquelas barracas fornecidas pela ONU, destinadas ao acolhimento provisório enquanto as casas não ficam prontas.
Não, não está tudo bem, porque há pessoas severamente afetadas pela enchente, residentes em ruas que ficaram completamente alagadas, que não conseguiram receber nenhum dos auxílios prometidos pelos governos federal, estadual e municipal. O governo federal liberou R$ 1,2 bilhão para o auxílio reconstrução de R$ 5,1 mil mas problemas de cadastro impediram o recebimento por parte de famílias que teriam direito.
Não, não está tudo bem, porque empresários que dependem de financiamento para retomar seus negócios não conseguiram os empréstimos prometidos pelos bancos públicos, muitos porque não conseguiram pagar suas obrigações com o fisco, exatamente porque a enchente paralisou suas empresas.
Não, não está tudo bem, porque produtores rurais que um dia tiveram anistia de uma dívida agora estão impedidos de receber recursos públicos. A burocracia ainda trava o socorro a quem precisa produzir.