A cena pode ser definida como patética. Na biblioteca do Palácio da Alvorada já vazio, sem a tradicional tradução em Libras, o presidente Jair Bolsonaro pergunta a uma funcionária se ela está em férias. A moça responde que está em recesso. O presidente pergunta de novo se ela está em férias. A moça repete que está em recesso. Ele quer saber qual é a diferença. Ela explica. Só então começa a última live de Bolsonaro em território brasileiro. Menos de quatro horas depois, ele decolaria para o último voo como presidente a bordo do BRS1, o Airbus A319, por ironia conhecido como AeroLula.
O conteúdo dos 51 minutos do vídeo é confuso. Bolsonaro não diz que vai viajar e fala aos seus, meio que se explicando por não ter feito nada nos quase 60 dias em que passou recluso no Alvorada. Dá a entender que ficou até a última hora esperando por uma solução que não veio. Enfim, se rende ao resultado das urnas, pede para comparar seus ministros com os indicados pelo presidente eleito Lula, faz previsões catastróficas para o país, se autoelogia, repete que deu a vida pelo país e pela liberdade, que fez o melhor possível, que foi boicotado pela imprensa, que o brasileiro hoje não tem liberdade (sic).
Vaticina que se a facada que levou em 2018 tivesse sido fatal, hoje o Brasil estaria pior. E completa dizendo que só pode ter sido Deus quem o colocou na presidência, lugar onde nunca imaginou estar, para retardar o atraso do Brasil por quatro anos pela “ideologia de esquerda”.
Com atraso, condena os atos violentos ocorridos em Brasília há duas semanas, com a queima de carros e ônibus. Diz que nada justifica essa violência, nem a bomba colocada em um caminhão na área do Aeroporto de Brasília por um de seus apoiadores. Tenta se desvincular dos terroristas. Não sugeriu diretamente que os manifestantes ainda acampados em frente aos quartéis voltem para casa, mas diz que não é o fim do mundo. Só pede que não ameacem e não agridam, porque não é o fim. Acena com a esperança de que alguma coisa aconteça.
Na tela, o que se vê é o retrato de um homem devastado. Um político que não soube entender uma premissa básica da democracia: vence a eleição quem faz mais votos. Ao final, só um agradecimento aos que estiveram com ele e votos de feliz 2023.
Sem fotos para marcar a saída do poder
Confirmou-se o que a coluna havia dito há dois dias: Bolsonaro saiu do poder pela porta dos fundos, como um fugitivo. Não há, até o momento, registro da saída dele e de Michele nos jardins do Alvorada, rumo ao Aeroporto de Brasília. Nem fotos do casal subindo as escadas do BRS1.
O avião que deveria decolar rumo a Orlando, na Flórida, às 13h45min acabou decolando às 14h02min. É esse, para fins históricos, o horário em que o presidente brasileiro fugiu para não passar a faixa para o sucessor. Poderia ter feito isso permanecendo em solo nacional, mas optou por um último voo a bordo ao avião presidencial, para ver o novo raiar em Miami, a 6 mil quilômetros de Brasília.
Não deu
Exatamente na metade da transmissão ao vivo, Jair Bolsonaro admitiu que tentou impedir, de algum jeito, a posse do presidente eleito, mas não encontrou respaldo legal.
—Busquei, dentro das quatro linhas, dentro das leis, respeitando a Constituição, saída para isso aí.
Em tom de satisfação a apoiadores que pregam ações golpistas para evitar o terceiro governo Lula, Bolsonaro reforçou que não saiu das "quatro linhas" da Constituição em seu mandato, e disse que para "certas medidas", o poder da caneta presidencial é insuficiente.
— Certas medidas tem de ter apoio do parlamento, de alguns do Supremo, de outros órgãos, de outras instituições. A gente não pode acusar apenas um lado, ou acusar a mim.
Aliás
Presidente em exercício desde que Jair Bolsonaro deixou o Brasil rumo aos Estados Unidos, Hamilton Mourão fará pronunciamento à Nação em cadeia de rádio e TV hoje, às 20h.