Mesmo para quem vive de palavras, é difícil encontrar alguma que expresse o sentimento nesta hora em que é preciso encarar a realidade. Nunca mais teremos a luz de David Coimbra brilhando entre nós. Teremos de encontrá-la nos textos que ele escreveu — e como escreveu — nestes 60 anos de vida.
Nos últimos 30 anos, fomos colegas no Grupo RBS. Dessa convivência e das divergências democráticas nasceu a admiração pelo homem que se entregava à vida, ao amor, ao jornalismo, à literatura e aos amigos. Ele era o mais completo, eclético e versátil da nossa geração.
A música tema da vida do David é dos Beatles, mas são versos do cancioneiro gaúcho que me ocorrem nesta hora triste, para a qual eu deveria estar preparada, porque sabia que o estado dele era gravíssimo, mas não estava. É de Luiz Menezes, na música Última lembrança, que Joca Martins interpreta divinamente:
"Quando morrer, permita Deus que nesta hora
Ouças ao longe o cantar da cotovia
Será minh'alma que num pranto triste chora
E nesta mágoa o teu nome pronuncia...”
David amou muitas mulheres, mas é em Marcinha que penso agora e a imagino ouvindo o cantar da cotovia no largo pampa que ela apresentou ao David. Marcinha, a companheira que nos últimos 10 anos foi a fortaleza ao lado do nosso amigo e do filho que os dois geraram, o Bernardo, um dos responsáveis para que aqueles seis meses dados pelos médicos quando descobriam o câncer se estendesse por 10 anos.
É incrível pensar agora que nestes 30 anos de Zero Hora nossa conversa mais longa tenha sido quando ele já estava naquela fase de buscar a cura. Porque vivemos sempre na corrida contra o tempo, nossas conversas sempre foram breves.
Eu não era da turma de amigos que varavam a noite tomando chopes cremosos, até porque sou uma criatura diurna. No dia da nossa conversa mais longa, estávamos a caminho de Brasília, para entrevistar a presidente Dilma Rousseff. Tomamos um chá de aeroporto e depois, no avião, David me contou em detalhes a descoberta do tumor, o choque inicial, a sentença de morte em seis meses, que ele reverteria com persistência, força de vontade, amor e o melhor que a medicina pode oferecer, no Brasil e nos Estados Unidos.
Impressionou-se a naturalidade como ele falava que naquele momento do tratamento experimental as metástases no fígado tinham diminuído (mas ainda eram muitas). Na entrevista, eu me perdia nas respostas de Dilma olhando para o meu colega e me perguntando como conseguia estar ali, trabalhando. Muitas vezes me perguntei como era possível escrever tão bem sentindo dores lancinantes e sabendo que a doença é traiçoeira.
David contou a história em detalhes no livro Hoje eu venci o câncer. O livro termina com final feliz, porque ali ele tinha vencido mesmo, mas o bicho é traiçoeiro e voltou mais feroz.
A pandemia nos privou da presença dos colegas por dois anos e quando começamos a voltar o David precisou ficar em casa, porque sua imunidade estava muito baixa. Encontramo-nos apenas uma vez, no encontro de final de ano na RBS. Quando o abracei, estava tão magro que levei um choque, mas mantinha o bom humor e aquele espírito tão característico.
Hoje, como sempre acontece quando perdemos uma pessoa querida, gostaria de acreditar que existe outra vida, outra dimensão, onde os que morrem se encontram. E que nessa dimensão David encontrará meu pai e dirá a seu Alvino que eu era sua consultora para assuntos do reino vegetal, porque recorria a mim quando precisava identificar uma flor, um arbusto ou uma árvore incomum.
Nessa dimensão David encontrará Ricardo Carle, o amigo que formava o quarteto com Telmo Flor e Juremir Machado da SIlva nos tempos em que matavam aula na Famecos e iam para um bar discutir política e filosofia. Nesse mundo para onde as almas voam, David há de encontrar o Professor Juninho, amigo e personagem de tantas crônicas, para tomar os tais chopes cremosos. Há de encontrar o avô sapateiro, que nos parece alguém da família e passar horas conversando sobre o IAPI, a dona Diva, os jogos de bola no estádio Alim Pedro e as reuniões dançantes da Zona Norte.
Um dos maiores leitores da nossa geração, conhecedor profundo das grandes obras da literatura universal, talvez agora David consiga arrastar Tostoi para uma mesa de bar celestial e trocar o chope pela vodca, Júlio Cortázar para um café com medias lunas, Proust para um bate-papo à sombra das raparigas em flor.