O que faz um homem honrado quando sua reputação ou a da instituição que dirige é colocada sob suspeita pelo presidente da República ou por qualquer outra pessoa? Exige que se retrate ou prove que o acusador tem elementos para fazer a acusação. Foi o que fez o presidente da Anvisa com a carta em que exige do presidente Jair Bolsonaro que se retrate ou determine uma investigação imediata sobre sua conduta.
A nota de cerca de 30 linhas é um documento essencial para o escafandrista que quiser, daqui a 50 anos, mergulhar nos escombros do governo Bolsonaro para entender sua lógica na gestão da pandemia. Em linguagem elegante, o presidente da Anvisa responde a uma insinuação vil de Bolsonaro, que em entrevista à TV Nova Nordeste, falando sobre a vacina para crianças de cinco a 11 anos, afirmou:
— Você vai vacinar o teu filho contra algo que o jovem por si só, uma vez pegando o vírus, a possibilidade dele morrer é quase zero? O que que está por trás disso? Qual o interesse da Anvisa por trás disso aí? Qual o interesse das pessoas taradas por vacina?.
Médico e contra-almirante da Marinha, Barra Torres deixou Bolsonaro na obrigação de se retratar ou de mandar investigar. Diz um trecho da nota: "Se o senhor dispõe de informações que levantem o menor indício de corrupção sobre este brasileiro, não perca tempo nem prevarique, Senhor Presidente. Determine imediata investigação policial sobre a minha pessoa aliás, sobre qualquer um que trabalhe hoje na Anvisa, que com orgulho eu tenho o privilégio de integrar".
Bingo. Se não se retratar e não mandar abrir uma investigação, indicando fatos concretos que o levaram a fazer esse comentário, Bolsonaro estará prevaricando, o que é crime. Prevaricação é uma palavra feia que significa um funcionário público retardar, deixar de praticar ou praticar indevidamente ato de ofício ou praticá-lo contra disposição expressa da lei para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.
O presidente da Anvisa quis marcar posição diante da leviandade do capitão e forçá-lo a se retratar. Diz em outro trecho: "Agora, se o senhor não possui tais informações ou indícios, exerça a grandeza que o seu cargo demanda e, pelo Deus que o senhor tanto cita, se retrate. Estamos combatendo o mesmo inimigo e ainda há muita guerra pela frente".
O tom pessoal da nota indica que Barra Torres estava engasgado desde que o presidente ameaçou divulgar os nomes dos técnicos da Anvisa que liberaram a vacina da Pfizer para aplicação em crianças de cinco a 11 anos, como se tivessem feito alguma coisa condenável. Os técnicos vêm recebendo ameaças de bolsonaristas radicais e o presidente da República não fez qualquer esforço para defendê-los. Pelo contrário.
Barra Torres começa a nota lembrando que como oficial general da Marinha serviu ao país por 32 anos e sempre pautou sua vida em austeridade e honra. E dá uma estocada sutil no presidente que tanto fala no nome de Deus: "Como cristão, Senhor Presidente, busquei cumprir os mandamentos, mesmo tendo eu abraçado a carreira das armas. Nunca levantei falso testemunho. Vou morrer sem conhecer riqueza Senhor Presidente. Mas vou morrer digno. Nunca me apropriei do que não fosse meu e nem pretendo fazer isso, à frente da Anvisa. Prezo muito os valores morais que meus pais praticaram e que pelo exemplo deles eu pude somar ao meu caráter".
Confira a íntegra da nota:
"Nota – Gabinete do Diretor Presidente da Anvisa, Sr. Antonio Barra Torres
Em relação ao recente questionamento do Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, quanto à vacinação de crianças de 05 a 11 anos, no qual pergunta "Qual o interesse da Anvisa por trás disso aí?", o Diretor Presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, responde:
Senhor Presidente, como Oficial General da Marinha do Brasil, servi ao meu país por 32 anos. Pautei minha vida pessoal em austeridade e honra. Honra à minha família que, com dificuldades de todo o tipo, permitiram que eu tivesse acesso à melhor educação possível, para o único filho de uma auxiliar de enfermagem e um ferroviário.
Como médico, Senhor Presidente, procurei manter a razão à frente do sentimento. Mas sofri a cada perda, lamentei cada fracasso, e fiz questão de ser eu mesmo, o portador das piores notícias, quando a morte tomou de mim um paciente.
Como cristão, Senhor Presidente, busquei cumprir os mandamentos, mesmo tendo eu abraçado a carreira das armas. Nunca levantei falso testemunho.
Vou morrer sem conhecer riqueza Senhor Presidente. Mas vou morrer digno. Nunca me apropriei do que não fosse meu e nem pretendo fazer isso, à frente da Anvisa. Prezo muito os valores morais que meus pais praticaram e que pelo exemplo deles eu pude somar ao meu caráter.
Se o senhor dispõe de informações que levantem o menor indício de corrupção sobre este brasileiro, não perca tempo nem prevarique, Senhor Presidente. Determine imediata investigação policial sobre a minha pessoa aliás, sobre qualquer um que trabalhe hoje na Anvisa, que com orgulho eu tenho o privilégio de integrar.
Agora, se o Senhor não possui tais informações ou indícios, exerça a grandeza que o seu cargo demanda e, pelo Deus que o senhor tanto cita, se retrate.
Estamos combatendo o mesmo inimigo e ainda há muita guerra pela frente.
Rever uma fala ou um ato errado não diminuirá o senhor em nada. Muito pelo contrário.
Antonio Barra Torres
Diretor Presidente – Anvisa
Contra-Almirante RM1 Médico
Marinha do Brasil "