O título Clovis Tramontina, Paixão, Força e Coragem, biografia de um dos mais importantes e carismáticos empresários do Rio Grande do Sul, comportaria, no mínimo, mais uma palavra: ousadia. Do nascimento ao momento em que prepara a transferência do bastão de presidente da Tramontina, ousadia é o que não falta na vida desse descendente de italianos que há 30 anos comanda uma empresa familiar de padrão global, com produtos vendidos em todos os continentes.
A ousadia começa pelo nascimento, em 23 de junho de 1955. Antes dele, os pais, Ivo e Laura, haviam perdido quatro filhos – um nas últimas semanas de gestação, uma menina ao nascer, um bebê com um dia e outro com um mês. A quinta gravidez de Laura, aos 24 anos, chegou cercada de temores de que aquele filho tão esperado não vingasse, mas Clovis ousou desafiar o destino. “Fui muito esperado. Quando eu cheguei e vinguei, foi uma festa. E vieram mais quatro festas depois. Eu abri a porteira”, escreve ele, nas primeiras páginas.
A jovem Laura procurou a bênção do padre José Ferlin, que tinha fama de milagreiro, e a ajuda de um negro chamado Olavo, em busca de proteção. Dele ouviu uma profecia:
— Teu filho vai ter um futuro maravilhoso na vida. E tu vais ser uma mulher vitoriosa.
O “nene”, como seria chamado pela mãe até depois de adulto, foi o primeiro bebê a nascer no hospital São Roque. A preocupação com a saúde do rebento fez com que crescesse numa espécie de redoma, privado até do contato com a avó, Elisa, que sofria de tuberculose. Como a família temia que contaminasse o menino, a avó inventou uma forma sui generis de caminhar com neto: cada um segurava na ponta de uma vara, “o mais próximo possível de andar de mãos dadas”.
O tempo todo, a mãe temia que o filho se machucasse e o privava das brincadeiras, mas, quando virava as costas, ele se soltava. O pavio curto dos dois fez com que brigassem muito, e por irrelevâncias, mas o amor sempre falou mais alto. Tanto que, quando estava em Carlos Barbosa, na Serra, Clovis sempre passava na casa dos pais à saída da Tramontina – e continuou seguindo o ritual quando Laura morreu.
Fruto da pandemia
A ideia de contar sua história em livro nasceu durante a pandemia, quando Clovis precisou se isolar com a família em Xangri-Lá. Estimulado pela filha Elisa e inspirado no amigo Nelson Sirotsky, que em 2018 publicou O Oitavo Dia (Ed. Sextante), Clovis resolveu aproveitar os dias ociosos para organizar o livro em que contaria sua história.
— Achei que era coisa simples, que em duas semanas resolvia tudo, mas lá se vão quase dois anos — contou na terça-feira, em entrevista ao programa Gaúcha Atualidade, da Rádio Gaúcha.
A pandemia se estendeu para além de todas as previsões, mas o empresário se orgulha de não ter demitido nenhum empregado e de hoje a Tramontina ser maior do que era em março 2020. Vendo as dificuldades a sua volta, Clovis organizou o comitê de crise, que passou a ajudar as comunidades onde a empresa está inserida e os fornecedores que temiam quebrar por falta de encomendas. Forneceu cestas básicas, doou utensílios e realizou aportes financeiros a instituições do Rio Grande do Sul, do Pará e de Pernambuco, onde tem fábricas.
Para ajudar hospitais que precisavam de respiradores, uma das fábricas foi adaptada para produzir o Ventra, aparelho de suporte respiratório entregue a mais de 60 hospitais.
A produção do livro se estendeu pela profundidade do trabalho, que exigiu dezenas de horas de depoimentos do biografado e de quem convive com ele, e também pela exigência do time envolvido: o próprio Clovis e três mulheres obsessivas pela perfeição – Rosane Fantinelli, diretora de Marketing, Fátima Torri, coordenadora de produção, e Vania Rommel, responsável pela pesquisa. A elas somou-se o jornalista Itamar Melo, dono de um texto primoroso, e o editor Paulo Ledur. O resultado é uma edição de luxo, ilustrada com fotos antigas de todas as fases da vida do empresário, em que suas falas em primeira pessoa (destacadas em itálico) se limitam ao essencial. Sobra espaço para indiscrições, como a de ter tomado mamadeira até os 15 anos de idade.
O governador Eduardo Leite, que assina a orelha, escreveu: “Quando revisito o que significa a ideia de empreender e como este comportamento nos caracteriza, invariavelmente chego a alguns nomes representativos, no âmbito público e privado, e o empresário Clovis Tramontina está entre eles”.
Relações duradouras
Na vida dos Tramontina, o tempo é o cimento que sela as relações familiares, de amizade e de trabalho. Em geral, essas relações se entrelaçam de tal forma que não há como separar os vínculos. Amigos de infância são amigos até que a morte os separe. O padrinho Ruy Scomazzom, o “seu Ruy” é mais do que um sócio. Amigo desde o tempo em que a Tramontina era uma fábrica de canivetes e sua avó precisou da ajuda de alguém instruído para colocar a “escrita em dia”, foi sempre um fiel parceiro de seu pai, Ivo, e conselheiro do herdeiro escolhido para assumir a presidência.
O casamento com Eunice Milan, a Nice, já dura quatro décadas. Os dois foram colegas de escola e, para ficar perto dela, que estudaria Psicologia na Unisinos, Clovis decidiu cursar, simultaneamente, Administração na PUCRS e Direito na Unisinos. É Nice, a quem define como “mulher da minha vida”, que Clovis dedica o livro. E também aos filhos Elisa, Marcos e Ricardo e aos netos Rafaela, Lucas, Leonardo, Isabella, Valentina e Laura.
A marca principal dele sempre foi a paixão. Além disso, Clovis está sempre alerta, em busca de novidades. Importa, exporta, descobre produtos e mercados novos, estuda o comportamento das famílias, identifica oportunidades.
CLAUDIO LUIZ ZAFFARI
Apesar do gigantismo da Tramontina, a política de recursos humanos desafia os manuais de administração, tanto na seleção quanto na promoção. Famílias inteiras trabalham na empresa, estimula-se o casamento entre empregados e valoriza-se mais a prata da casa do que currículos repletos de títulos. Demitir, só se o funcionário quiser sair. São comuns os casos de executivos que começaram pelo chão de fábrica a ascenderam a cargos de direção, escolhidos pelo olho clínico dos proprietários para identificar talentos.
Clovis tem um jeito singular de conhecer os colaboradores que pretende promover: convida-os para pescarias e, no silêncio das canoas, entre iscas, anzóis, carretilhas e redes, vai auscultando as pretensões do subordinado, sem as formalidades de uma entrevista.
Ele não foi ungido presidente por ser o filho do dono, mas por ter provado, em cargos inferiores, no Rio Grande do Sul e em São Paulo, que estava apto para comandar um grupo que nestes 30 anos não parou de crescer. A visão estratégica, a capacidade de conquistar e de encantar clientes e a liderança natural não foram as únicas credenciais. Clovis estudou e segue estudando com a certeza de que há sempre espaço para aprender.
Ele relembra o dia em que o pai, Ivo Tramontina, foi às lágrimas em Israel ao visitar um restaurante italiano. Como pediram carne, o garçom disse que ia trocar os talheres e voltou com facas Tramontina. Nas viagens, esse é um dos prazeres da família, dos executivos e dos clientes da empresa: descobrir a marca Tramontina gravada, principalmente, nos talheres dos restaurantes.
Uma pesquisa do Datafolha mostrou que a Tramontina é conhecida de 97% dos brasileiros. Natural, visto que a empresa produz nada menos do que 22 mil itens, que vão muito além de panelas, talheres e utensílios de aço inoxidável. Tramontina também é sinônimo de ferramentas, móveis de plástico e madeira, pias, fogões, material de construção e tudo o que se possa imaginar para a casa, o jardim, a piscina, o galpão e a lavoura.
Esse mix impressiona o empresário Décio Silva, presidente do Conselho de Administração da WEG, fornecedora da Tramontina:
— Uma das coisas mais impressionantes é que ele levou a Tramontina a produzir 22 mil itens diferentes, o que é questionável do ponto de vista dos especialistas em marketing e dos consultores de gestão, mas ele fez isso funcionar.
A avó, exemplo de resistência
A vida da matriarca Elisa De Cecco Tramontina daria um livro à parte, um filme ou uma série sobre a força da mulher italiana.
Clovis é um homem simples, mas que lê as situações com muita perspicácia, sempre enxergando como transformar as coisas em algo muito maior.
LUCIANO HUCK
A despeito das tragédias que se abateram sobre sua vida, ela continuou a erguer o império que começara com o marido Valentin, nos anos 1920, produzindo facas e canivetes. Em 1925, com três filhos pequenos, o casal perdeu o principal cliente de sua pequena oficina e um tentava consolar o outro. Olhando o descampado em que se destacava uma árvore solitária, Valentin profetizou:
— Virá o dia em que minha ferraria vai ser a mais grande do Rio Grande.
— Nossa fábrica vai crescer além da árvore — reforçou Elisa.
A Tramontina cresceu além da árvore, da floresta, das fronteiras do Brasil, mas Valentin não viveu para ver. Deprimido com a morte do filho Henrique, ao nove anos, adoeceu e morreu aos 46, em 1939. Um ano depois, morreria o segundo filho, Nilo, aos 17. Viúva e com o caçula Ivo para criar, Elisa foi à luta: assumiu o comando da fábrica, dividiu um terreno em 13 lotes e os distribuiu entre os trabalhadores da ferraria. “Ela fidelizou os colaboradores no período difícil da Segunda Guerra. Foi uma espécie de reforma agrária antecipada. Foi uma grande disrupção, como se diz hoje”, conta o neto Clovis no livro.
De tempo em tempo, segundo relato do filho Ivo, Elisa enchia uma mala de garupa com a produção de facas e canivetes, tomava o trem até Porto Alegre e circulava pela Capital oferecendo a mercadoria de porta em porta. Caminhava por horas a fio para não pagar os 47 réis da passagem do bonde. Ela tinha vocação para as vendas. O filho, para a gerência da fábrica.
Poder acompanhar os detalhes da trajetória de Clovis, desde a sua entrada na empresa, seu crescimento, sua experiência, seu modelo de gestão e o enfrentamento de situações adversas, inclusive na saúde, é uma generosidade de aprendizado, ainda mais contados de forma leve e didática que nos prende a atenção.
LUIZA HELENA TRAJANO
Numa viagem, a matriarca foi abordada por um fiscal de impostos, querendo saber da documentação tributária, coisa que ela não tinha ideia do que se tratava. Foi desse episódio que nasceu a parceria com os Scomazzom: Elisa perguntou à amiga Anna Dal Bó Scomazzom se seu filho Ruy, que estudava Economia em Porto Alegre, não poderia ajudá-la. Ruy começou como voluntário e tornou-se sócio de Ivo, abrindo mão de fazer carreira na próspera fábrica de móveis de vime da família.
Em homenagem à avó inspiradora, Clovis e Nice deram o nome de Elisa à primeira filha, hoje designer da Tramontina.
A doença e o futuro
Desde 1986, Clovis Tramontina convive com um diagnóstico que poderia ter lhe impedido de desfrutar de tudo o que mais gosta, não fossem a capacidade de resistência e a resiliência: esclerose múltipla. Quando teve os primeiros sintomas (dificuldade para enxergar com um olho, paralisia no lado esquerdo do corpo e falta de coordenação), o neurologista Paulo Ricardo Mattana cogitou duas hipóteses: tumor no cérebro ou esclerose múltipla.
Mattana prescreveu uma ressonância magnética, que à época só podia ser feita em São Paulo, mas ele deixou o assunto de lado até que, semanas depois, os sintomas se agravaram. Em reunião com o publicitário Hector Brenner, perdeu o controle dos movimentos. Informado do retrospecto, Brenner o levou a São Paulo e, feita a ressonância, o neurologista Milberto Scaff confirmou o diagnóstico de esclerose. De volta a Caxias do Sul, perguntou a Mattana:
— Doutor, eu vou morrer disso?
— Tu não vais morrer disso, mas vais morrer com isso.
Otimista, Clovis avisou:
— Está muito bom. Vou aprender a conviver com essa doença.
As limitações não o impediram de viajar pelo mundo a serviço da Tramontina, fazer turismo com a família e com amigos, acompanhar a Seleção Brasileira nos mundiais de futebol e celebrar as vitórias do Inter e da sua Associação Carlos Barbosa de Futsal (ACBF), clube que fundou, dirigiu e ajudou a conquistar títulos até chegar ao topo do ranking mundial.
—Eu mudei o futsal. Isso é uma conquista pessoal e intransferível — orgulha-se.
A empresa liderada por Clovis é um grande exemplo da capacidade do imigrante de empreender, unindo competência industrial, talento comercial e tecnologia avançada. Clovis representa essa tradição com uma convicção e uma firmeza capazes de superar todas as crises. Nada o detém, nem as limitações físicas.
NELSON SIROTSKY
Apoiado em uma bengala ou em cadeira de rodas, Clovis não tira o sorriso do rosto nem perde o bom humor nem a simplicidade do gringo que correu o mundo mas mantém as raízes na simpática Carlos Barbosa.
A partir de janeiro de 2022, ele deixará a presidência do grupo, depois de três décadas, e ficará apenas no Conselho de Administração. A decisão de sair é fruto de uma reflexão feita na pandemia. Em dezembro de 2020, Clovis explicou seus motivos ao jornalista Cristiano Vieira, do Jornal do Comércio:
— Este 2020 foi um ano em que repensamos nossas vidas, perdemos pessoas, aprendemos a valorizar o tempo que é precioso e que passa muito rápido, sem fazer tudo o que gostaríamos. Houve uma perda de liberdade com o isolamento social. Pessoalmente, essa reflexão chegou a minha vida profissional. Vi que não sou onipotente, temos que saber a hora de sair da empresa.
Se a decisão de sair estava tomada desde 2020 e a data foi definida, em 2021, faltava definir o sucessor. E aqui a surpresa. Por um antigo acordo entre as famílias proprietárias, o presidente seria sempre um Tramontina e o vice, um Scomazzom, mas as conversas entre os sócios evoluíram para um novo modelo. A partir de agora, o presidente terá mandato de quatro anos, alternando um representante de cada holding familiar. O próximo presidente será Eduardo Scomazzom e o vice, Marcos Tramontina, deverá sucedê-lo em 2026.
E Clovis, o inquieto, como ocupará seu tempo? Na educação. Em parceria com a Unisinos, o empresário vai realizar um sonho antigo de atuar na formação de líderes, não só empresariais, mas gestores em geral.
Clovis merece reconhecimento porque é um bravo, alguém que consegue motivar as pessoas. Essa é uma coisa que me impressiona nele e que causa inveja em outras empresas. Ele tem a capacidade de desenvolver gente de dentro e de manter uma cultura, de garantir a permanência de valores a longo prazo.
JULIO MOTTIN NETO
— Oferecer um curso de liderança é um sonho antigo meu — diz.
— Acho muito importante desenvolver talentos nessa área, porque o Brasil está precisando de pessoas com capacidade de liderar. O foco não será apenas em lideranças empresariais, mas também políticas. Precisamos formar pessoas que acreditem em seus projetos, que não tenham medo de errar. Além disso, quero trabalhar com projetos ambiciosos para garantir educação gratuita de qualidade às crianças e aos adolescentes.
A expectativa é entregar a Tramontina como uma empresa de R$ 10 bilhões de faturamento anual. Em 2020, o grupo cresceu 39% e faturou R$ 8,3 bilhões. Alguém duvida de que ele seja capaz?