Depois de virar notícia no The New York Times por ser o epicentro da pandemia de covid-19 e uma terra de negacionistas afeitos a teorias conspiratórias, Porto Alegre pode emplacar novas manchetes mundo afora, graças a seus diligentes vereadores. Por 26 votos a seis, a Câmara Municipal aprovou na tarde desta quarta-feira (31) a criação de uma frente parlamentar sobre os “possíveis benefícios do tratamento precoce” no combate à pandemia de coronavírus no município (veja abaixo como votou cada um dos vereadores).
Proposta pela vereadora Mônica Leal (PP), a frente parlamentar é uma dessas iniciativas que, a despeito da boa intenção, leva do nada a lugar nenhum. Quem acha que vermífugo funciona como prevenção à covid-19 vai continuar sustentando que é o caminho. Quem acredita nas pesquisas científicas seguirá convencido de que a eficácia do chamado “kit covid” não foi comprovada nos testes realizados mundo afora.
Não faltarão, entre os vereadores e vereadoras, testemunhos de que fizeram o “tratamento precoce” e se curaram. E ai de quem disser que 90% dos contaminados se cura sem tomar nada ou usando apenas antitérmicos (para a febre) e analgésicos para a dor no corpo.
Esse é o ponto: se a maioria dos contaminados se cura sem precisar de medicação, pela lei das probabilidades, quem toma hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e outros medicamentos indicados originalmente para patologias que precedem a descoberta do coronavírus pode evoluir satisfatoriamente, como evoluiria tomando água de coco, e atribuir o “milagre” ao coquetel.
Antes de começar os trabalhos, os vereadores terão de definir o que entendem por tratamento precoce. É o mesmo que “tratamento preventivo”, à base de vermífugo, vitamina D e zinco? É medicação aos primeiros sintomas, com hidroxicloroquina, azitromicina e complementos que variam conforme o médico ou o paciente? Ou é atendimento no tempo adequado, para tratamento de acordo com a gravidade do caso, consenso entre os cientistas?
Se a frente parlamentar quiser fazer um trabalho sério, deve ouvir não apenas os defensores dos benefícios do “tratamento precoce”, mas os intensivistas que dia após dia recebem pacientes que usaram essas drogas, acharam que estavam protegidos, demoraram a procurar atendimento e acabaram na UTI. Será preciso, também, ouvir os médicos que alertam para o risco de efeitos colaterais, como o de insuficiência renal pelo excesso de vitamina D ou de problemas no fígado pelo uso continuado de vermífugo acima da dose recomenda em bula.
No requerimento em que propôs a criação da frente parlamentar, Mônica Leal justificou o pedido pela "necessidade de discussão sobre as políticas públicas inerentes ao combate a pandemia de coronavírus".
— Médicos e cientistas serão convidados para falar, esclarecer esse tema tão polêmico que divide profissionais da área de saúde. Observo que tem médicos defendem o tratamento precoce e outros não — declarou a vereadora.
A coluna ouviu o diretor médico do Hospital Moinhos de Vento, Luiz Antônio Nasi, que há mais de um ano acompanha as pesquisas sobre o que funciona e o que não funciona no tratamento da covid-19, sobre o uso desses medicamentos por paciente que precisam de UTI. Disse Nasi:
— Estamos levantando os casos, mas boa parte dos pacientes que chegam já usaram tudo. Entretanto, alguns não informam que estão usando, por receio. Diversos pacientes referem o uso de um conjunto de remédios: ivermectina (alguns tomando diariamente, outros semanalmente há meses, com provas hepáticas compatíveis com hepatite aguda, mas não conseguimos distinguir se é secundário ao vírus ou à droga), cloroquina, com alterações eletrocardiográficas, e/ou com ingesta de doses muito altas de vitamina D. Já atendemos diversos casos de intoxicação pela vitamina D com níveis tóxicos de cálcio no sangue e insuficiência renal. Este ano parece que muito mais gente vem usando em função da gravidade dos casos de covid e do grande número de prescrições infundadas por médicos que se passam por “especialistas” em covid .
Como votaram os vereadores:
A favor da criação da frente parlamentar:
- Airto Ferronato (PSB)
- Aldacir Oliboni (PT)
- Alexandre Bobadra (PSL)
- Alvoni Medina (Republicanos)
- Cassiá Carpes (PP)
- Cláudia Araújo (PSD)
- Clàudio Janta (SD)
- Comandante Nádia Gerhard (DEM)
- Felipe Camozzato (Novo)
- Fernanda Barth (PRTB)
- Gilson Padeiro (PSDB)
- Giovane Byl (PTB)
- Hamilton Sossmeier (PTB)
- Jessé Sangalli (Cidadania)
- Jonas Reis (PT)
- José Freitas (Republicanos)
- Kaká D'Ávila (PSDB)
- Leonel Radde (PT)
- Lourdes Sprenger (MDB)
- Mariana Pimentel (Novo)
- Mauro Pinheiro (PL)
- Mônica Leal (PP)
- Pablo Melo (MDB)
- Psicóloga Tanise Sabino (PTB)
- Ramiro Rosário (PSDB)
- Reginete Bispo (PT)
Contra a criação da frente parlamentar:
- Bruna Rodrigues (PCdoB)
- Daiana Santos (PCdoB)
- Karen Santos (PSOL)
- Matheus Gomes (PSOL)
- Pedro Ruas (PSOL)
- Roberto Robaina (PSOL)
Não votaram:
- Idenir Cecchim (MDB)
- Márcio Bins Ely (PDT) - presidente da Câmara
- Mauro Zacher (PDT)
- Moisés Barboza (PSDB)
Cremers pede providências à OAB
O Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers) pediu providências à seccional gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil sobre as denúncias de que um advogado estaria atuando para coagir médicos a prescreverem determinados medicamentos.
Ofício relatando o caso foi entregue pelo vice-presidente do Cremers, Eduardo Neubarth Trindade, ao presidente da OAB-RS, Ricardo Breier. Relatos repassados ao conselho dão conta de que o profissional estaria oferecendo serviços de advocacia gratuita a pacientes de médicos que teriam se recusado prescrever substâncias que fazem parte do chamado “tratamento precoce” contra o coronavírus.
O Cremers não divulgou o nome do profissional, mas a coluna apurou que se trata de Felipe Bazzotti. Procurado, o advogado disse que não tinha conhecimento da denúncia.
O conselho anexou ao ofício a reprodução de uma publicação nas redes sociais do advogado, que, na visão da instituição, configura “incitação ao litígio entre familiares de vítimas fatais da covid-19 e os profissionais que prestam atendimento, bem como frente às instituições hospitalares”.
O texto da publicação diz:
“Quem perdeu parentes por negligência e/ou imperícia médica, desprezando tratamento precoce, disponho-me ajuizar (sic) Ações Indenizatórias pro-bono (sem honorários) contra médicos e/ou hospitais e Estados!”