No momento em que os condenados na Operação Lava-Jato se aproveitam do desmantelamento da força-tarefa que levou corruptos e corruptores para a cadeia para tentar escapar da punição, nenhum livro poderia ser mais oportuno do que A Organização, da jornalista Malu Gaspar. Com o subtítulo “A Odebrecht e o esquema de corrupção que chocou o mundo”, A Organização (Companhia das Letras, 2020, 639 páginas) não é uma ode à Lava-Jato, como alguns livros de ocasião, publicados nos últimos anos. Vale-se dela como insumo para compor um retrato das relações promíscuas entre empresários e políticos para conquistar contratos em troca de propina para financiamento de campanhas ou enriquecimento fácil.
Uma das repórteres mais respeitadas do Brasil, Malu, hoje colunista do jornal O Globo, já tinha dado provas de seu talento para montar quebra-cabeças e desnudar esquemas que vicejam no submundo da economia e da política quando escreveu Tudo ou Nada — Eike Batista e a Verdadeira História do Grupo X (Record, 2014). O método de trabalho é o mesmo: análise exaustiva de documentos e depoimentos e entrevistas com personagens que estiveram no centro dos acontecimentos.
Para escrever A Organização, foram três anos de trabalho intenso. O conteúdo das delações da Odebrecht e de outras empreiteiras serviu de ponto de partida. Malu examinou montanhas de documentos (só as notas de rodapé vão da página 563 a 618), escutou gravações, debruçou-se sobre o conteúdo de quebras de sigilo bancário, fiscal, telefônico e telemático e ouviu mais de 120 pessoas, entre executivos e familiares, delatores, concorrentes, parceiros de negócios, políticos, advogados e investigadores de variadas instâncias.
Construído de forma engenhosa para prender o leitor mesmo quando mergulha em um capítulo mais árido, A Organização é uma espécie de três em um: a história da Odebrecht, a biografia do príncipe destronado Marcelo Odebrecht e as maracutaias em que a empresa se envolveu e que acabaram por se transformar na sua ruína com a Lava-Jato. As três histórias se entrelaçam numa arquitetura digna dos melhores autores de ficção, mas Malu é repórter por excelência e a matéria-prima com a qual trabalha é realidade em estado puro, ainda que às vezes pareça surrealismo ou realismo fantástico.
A história da Odebrecht é repleta de conquistas e realizações, sonhos ousados, metas ambiciosas e trambiques que não começaram no governo Lula, como pode parecer a quem descobriu a existência de corrupção a partir da Lava-Jato. Nas fundações do império nascido na Bahia já aparecem sinais de relações promíscuas com o poder, que chegaram a o ápice no reinado do PT, se expandiram pela América Latina e pela África e culminaram com a mãe de todas as delações premiadas, depois da prisão de Marcelo e dos principais executivos do grupo.
Marcelo e sua relação tempestuosa com o pai, Emílio, ocupam parte substancial do livro e pontuam os capítulos mais interessantes para quem gosta de mergulhar na alma dos personagens. Tão diferentes no temperamento (pai extrovertido, filho sorumbático), os dois travam uma guerra que lembra as tragédias gregas, ainda que só metaforicamente o filho “mate” o pai.
Se um dia o livro virar filme, uma cena descrita por Malu não poderá faltar no roteiro, porque resume a frieza da relação pai e filho. Trata-se do encontro dos dois no Complexo Médico Penal de Curitiba, na primeira visita de Emílio ao herdeiro preso. Quem ler o livro entenderá a carga emocional desse encontro breve, sem abraço, sem beijo e sem afeto.
Os manuscritos de Marcelo em milhares de folhas de caderno numeradas e com o mesmo método com que registrava tudo no bloco de notas do celular, mais tarde usados como provas contra ele, revelam muito da sua personalidade obsessiva, que o pai definiria como “psicopata”. Marcelo sustenta que o psicopata é Emílio.
Preparado pelo avô Norberto para comandar o Império, o príncipe das empreiteiras, que já foi um dos homens mais poderosos do Brasil, se define no livro como um homem sem horizontes. Vive em São Paulo, com a mulher e as filhas, amargurado e convicto de que é vítima de traições familiares e que, se não tivesse sido expurgado da empresa, a Odebrecht não teria quebrado.
Conflitos familiares à parte, a essência de A Organização é a relação dos Odebrecht de três gerações com os políticos, a prática recorrente de pagar propina em troca de vantagens, a adulação de Emílio a todos os presidentes, com o discurso de mostrar “o que é bom para o Brasil” (embora fosse bom mesmo para a Odebrecht) e o esquema milionário montado a partir do governo Lula, de quem Emílio se considera uma espécie de criador, pela relação de cumplicidade construída muito antes de ser presidente.
A relação com a Odebrecht fluía sem obstáculos até Dilma Rousseff ser eleita presidente. Ela tentou resistir, mas foi tragada pela engrenagem montada no governo do antecessor e usada para financiar sua própria campanha. Escapou da Lava-Jato porque os investigadores não encontraram provas que a incriminassem, como encontraram contra ministros como Guido Mantega, Antonio Palocci e Fernando Pimentel.
Seus embates com Marcelo impediram que a Odebrecht vencesse concorrências que considerava estratégicas, mas o BNDES continuou financiando obras no Exterior, caso do Porto de Mariel, em Cuba, que custou cerca de US$ 1 bilhão. Na inauguração, pouco antes da derrocada, os dois apareceram sorridentes ao lado do então presidente cubano Raúl Castro.
Para quem ainda acha que a Lava-Jato foi apenas uma operação política para tirar Lula de cena, convém ler com atenção os capítulos que falam de valores e dos achaques de políticos do PT e de partidos aliados na Petrobrás e em outras estatais. A quantidade de dinheiro recuperado com as delações e acordos internacionais atesta que a Lava-Jato pode ter cometido exageros e atropelado a lei em diversos momentos, mas os desvios que identificou estão documentados e com fartas provas testemunhais, incluindo a reforma do sítio de Atibaia, um dos processos em que Lula já foi condenado.
Os rios de dinheiro da Odebrecht que irrigaram as campanhas eleitorais do PT, do MDB, do PP, do PSDB e de outros partidos estão descritos em detalhes nas delações premiadas e nas planilhas do Departamento de Operações Estruturadas, nome científico da central de distribuição de propinas que a Lava-Jato estourou.
Nada em A Organização habita o universo ficcional. Malu Gaspar condensa milhares de páginas publicadas em jornais e revistas, relatórios e sentenças judiciais faz as conexões que ligam um fato a outro para tecer a história do maior escândalo de corrupção do Brasil a partir da maior empresa envolvida, mas os métodos das outras não eram diferentes. Por isso mesmo, formavam um clube que combinava licitações e ditava os preços.
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