O outono de 2013 ficará para sempre na memória do ex-deputado Luiz Fernando Záchia como aquele em que sua vida pessoal e sua carreira política foram ao chão, devastadas por um furacão chamado Concutare. Até então um dos principais líderes do MDB, ex-vereador, ex-presidente da Assembleia e ex-chefe da Casa Civil, Záchia ocupava o cargo de secretário municipal do Meio Ambiente quando acordou com a Polícia Federal na porta de seu apartamento, no bairro Bela Vista, em Porto Alegre. Era o início de um pesadelo que o jornalista e escritor Gustavo Machado ajudou Záchia a recontar no livro Setenta e Seis Passos – Dias que mudaram a minha vida.
A pandemia frustrou os planos de um lançamento, com sessão de autógrafos, mas o livro de 150 páginas (Editora Pubblicato) está à venda e revela as entranhas de uma operação policial rumorosa e repleta de furos.
Se fosse uma história de ficção, qualquer leitor imaginaria que a inspiração vem de Franz Kafka. Porque Záchia foi arrancado de casa naquela manhã, sem saber do que estava sendo acusado, e levado à sede da Polícia Federal e, mais tarde ao Presídio Central, depois de ver os policiais recolherem documentos, dinheiro e até o computador em que sua mulher, a médica Suzana, guardava trabalhos científicos. Tudo na casa era tratado como suspeito pelos agentes da lei.
Nunca foi denunciado. Sem processo, não tinha como se defender. E assim viveu seis anos, até o inquérito ser arquivado por falta de provas. Uma das maiores dores é saber que sua mãe, Lurdes, que à época da prisão começava a apresentar os primeiros sintomas do Mal de Alzheimer, morreu sem saber que fora inocentado.
No prefácio, o senador Pedro Simon escreveu: “Não há denúncia, não há prova, não há nada. E, ainda assim, por algum capricho incompreensível a quem anda longe das catacumbas do poder, um homem inocente está sendo torturado, moral e emocionalmente, por longos anos”.
Nesse relato real, ilustrado com citações de escritores célebres e escrito em primeira pessoa, as palavras são de Záchia, mas a estrutura não linear é criação de Gustavo, leitor apaixonado, que domina a arte do romance. Quem acompanhou a história em 2013 e nos anos subsequentes ouviu de Záchia, em fragmentos, o que no livro é contado em detalhes e até com algum senso de humor em certas passagens. Ele não era o único preso na Operação Concutare. O grupo todo somava 18 pessoas, incluindo o secretário estadual do Meio Ambiente, Carlos Fernando Niedersberg, e o ex-secretário Berfran Rosado, à época consultor de empresas.
A acusação vaga era de corrupção, mas o delegado que interrogou o ex-deputado não soube precisar do que estava sendo acusado e esse é o maior tormento. Sem conhecer a acusação, não tinha como se defender. Tão logo a prisão tornou-se pública, o então prefeito José Fortunati o exonerou sumariamente — mágoa que Záchia confessa no livro. “Esperava mais consideração e mais hombridade”, revela, para no parágrafo seguinte detalhar sua decepção com Fortunati e deixar claro que as feridas não cicatrizaram.
O cerne do livro é a experiência dentro do Presídio Central, onde conviveu com assassinos, ladrões, traficantes de drogas e criminosos enquadrados em diferentes artigos do Código Penal. Entre eles, o Chacal, que cumpria pena por nada menos do que 36 assassinatos e que se tornaria, naqueles dias, o protetor do grupo no inferno do Central. A história de Chacal, menino pobre que se transformou num dos assassinos mais violentos do Estado, ocupa boa parte do livro, junto a reflexões sobre a impossibilidade de alguém confinado naquela masmorra se recuperar.
Setenta e seis passos é o comprimento do corredor pelo qual, insone, Záchia vagou nos cinco dias em que esteve recluso no Presídio Central. Assim o ex-deputado descreve o corredor que marcou para sempre o período em que perdeu amigos, oportunidade e prestígio:
“Nas raras vezes em que o sono vem leve e agitado a ponto de me deixar, no meio da noite, eu me sento na cama e ainda enxergo aquele pedaço de inferno que estará comigo para sempre. A boca seca, o coração dispara, passado e presente se atropelam numa vertigem, mas minha visão é nítida. Me vejo indo e voltando num corredor longo o suficiente para que eu conte 76 passos na ida, 76 na volta.”