Cinco anos depois de ter sido um dos presos na Operação Concutare, o ex-deputado Luiz Fernando Záchia sente-se como um personagem de Franz Kafka: apesar de ter sido indiciado pela Polícia Federal ainda em 2013, não responde a um processo e sequer foi denunciado.
Mas se colocar seu nome no Google, vai aparecer que passou cinco dias no Presídio Central. Lá conviveu com homicidas, entre eles o temível Chacal, condenado por 36 assassinatos.
De tudo o que sofreu nesse período, o que mais machuca o ex-deputado é saber que a mãe nunca saberá que até hoje ele não foi denunciado. Aos 90 anos, dona Antonieta Lourdes Záchia sofre de Alzheimer:
— Depois do episódio, a doença avançou de forma muito acelerada. As últimas memórias dela serão da minha prisão. Em 2013, ela ainda estava relativamente lúcida. Não plenamente, mas reconhecia os filhos, lia jornal, assistia televisão, essas coisas. Eu nunca vou ter oportunidade de dizer pra ela: olha, mãe, tu tinhas razão. Teu filho não tinha problema, ele é honesto.
Em 2015, quando foi chamado para assumir por um mês a cadeira de deputado, já que era suplente e o então deputado Eliseu Padilha estava saindo para assumir o Ministério da Aviação, Záchia não queria ir para Brasília. Foi Padilha quem o convenceu com uma frase: "Não é justo para a tua carreira que a última imagem seja a da tua prisão. Mesmo que seja por 30 dias, tu foste deputado federal. Assume".
Nesta sexta-feira (27), em entrevista ao Gaúcha Atualidade, Záchia falou sobre os cinco anos à espera de um arquivamento ou de um processo. Repetiu o desabafo que fizera antes, em longa conversa gravada, cujos principais trechos são transcritos abaixo:
Cinco anos depois de ter sido preso, o senhor não foi processado nem denunciado. O que mudou na sua vida de lá para cá?
Tive uma trajetória política que muito me orgulha. Fui vereador por 10 anos, presidente da Câmara Municipal, deputado, líder do governo Rigotto, presidente da Assembleia, secretário de Desenvolvimento, chefe da Casa Civil e secretário municipal do Meio Ambiente. Desde a Operação Concutare, em 28 de abril de 2013, se passaram cinco anos e eu sequer tenho uma denúncia. Tive uma vida política interrompida e a vida pessoal abalada de um momento para o outro e nunca tive uma explicação para isso. Nunca soube o porquê disso. Nem eu nem o meu entorno, o meu mundo, a minha vida. Nunca tive uma explicação do tipo "tu foste, junto com outras pessoas, detido cinco dias no Presídio Central por isso, por isso ou por aquilo". A Polícia Federal encerrou o inquérito em 30 de agosto de 2013, enviou para o Ministério Público Federal e até hoje não tem uma denúncia. Eu não sei o que houve.
Qual era a sua relação com as outras pessoas que estavam sendo investigadas e por que o senhor acha que o seu nome foi envolvido nessa investigação? Que provas apresentaram contra o senhor?
A única vez que eu fui chamado para falar sobre isso foi no dia 1º de maio, quando estava preso. Fui à Polícia Federal. Tinha o direito de permanecer em silêncio, mas disse "não, eu falo". Não tenho nenhum problema em falar. Alguns optaram por ficar em silêncio. Eu não. Falei durante quase cinco horas. O delegado que conduzia o processo disse: "Olha, Záchia, tu não eras foco do processo, mas no cruzamento de conversas teve conversas tuas com pessoas que estavam sendo investigadas". Uma coisa muito vaga. Respondi tudo, desde quem pagou um jantar em Madrid, quem pagou um ingresso de um jogo de futebol que em tese nós iríamos assistir, do Real Madri, e que não fomos.
Essa era uma viagem oficial?
Fui apresentar no Congresso Mundial de Desenvolvimento Urbano o projeto da Orla do Guaíba, convidado pelos organizadores do evento. Esse convite foi intermediado por uma pessoa que estava sendo investigada, mas eu fui com despesas pagas pela prefeitura, um processo oficial. Nenhum agente público sai do país sem um processo oficial, sem uma comunicação ao Ministério das Relações Exteriores. Fui com passagem e diárias da prefeitura, tudo publicado no Diário Oficial. Fizeram relações de conversas e tiraram conclusões porque eu tinha relação com uma pessoa que estava sendo investigada. O mais interessante é que quando eu cheguei na PF, na manhã da segunda-feira, havia 18 pessoas numa sala. Eu só conhecia três. Um é um amigo pessoal (o ex-deputado Berfran Rosado) e com outros dois tinha relações políticas, de conhecimento do tempo da Assembleia Legislativa. As outras 15 eu não sabia quem eram. Eu nunca tinha visto, nunca tinha conversado, nunca tinha tido relação pessoal ou profissional.
O senhor teria como beneficiar algum dos investigados?
De jeito nenhum. Teve um diálogo até interessante. Um shopping (Iguatemi) tinha entrado com uma solicitação de cortar um figueira centenária. O processo estava tramitando na secretaria e chegou a mim este questionamento com a posição dos técnicos: não se corta uma figueira centenária. Só que outra pessoa, vinculada a outro shopping (BarraShoppingSul), que tinha um grande projeto tramitando na prefeitura me telefonou para tratar da audiência pública sobre esse projeto e falou sobre o caso da figueira, pedido pelo concorrente. Eu disse "fica tranquilo". Porque é inadmissível pensar na possibilidade do corte dessa figueira.
Não poderia ser cortada porque seria um crime ambiental?
Isso é lei, é parecer do técnico. Tanto que a empresa que tinha solicitado, naquele momento do telefonema, já tinha retirado o processo porque ela também teve a consciência e alterou o projeto. O shopping foi duplicado e a figueira está lá até hoje.
Na avaliação da Polícia Federal, o senhor favoreceu essa empresa quando disse "fica tranquilo"?
Talvez eu tenha me expressado errado ao dizer "fica tranquilo". Mas se eu digo que pode cortar a figueira, estou favorecendo a outra empresa. Se eu não corto, respeitando o que diz a lei, estou favorecendo um concorrente? Nunca chamaram um técnico para prestar esclarecimentos. Acho que houve uma grande confusão das pessoas que fizeram essa operação, quando misturaram Meio Ambiente de Porto Alegre com Meio Ambiente estadual e federal. Eu disse na época: eu tenho uma limitação. Não posso nem botar o pé no Guaíba. Quando entrou cinco centímetros no Guaíba a competência é da Fepam.
Demorou quanto tempo para o senhor entender por que estava sendo investigado nessa operação? Ou não entendeu ainda?
Cinco anos. Até hoje eu não entendi. E isso é uma coisa que diariamente eu penso. Às vezes as pessoas me perguntam: "Tu não és mais candidato?". Eu digo não, abandonei. E fazer política era uma coisa que eu adorava. Fazia com muito prazer e com muito gosto. E aí volta o assunto. As pessoas perguntam: "Como está o teu processo?" E eu digo não tem um processo. Não tenho sequer uma denúncia.
O senhor buscou explicação do MPF?
Não. Eu tenho um advogado que acompanha minhas coisas e não tem manifestação. Não tem arquivamento, não tem nada. Está numa gaveta. Se estiverem investigando, que me chamem. Eu dou explicação para quem quer que seja. Nunca fugi disso e disse isso na Polícia Federal, no meio de uma prisão. Respondi por quase cinco horas a todas as perguntas.
Tive uma vida política interrompida e a vida pessoal abalada de um momento para o outro e nunca tive uma explicação para isso. Nunca soube o porquê disso.
Qual foi o momento mais traumático até hoje?
Foi o momento da chegada da polícia na minha casa. Primeiro, que eu achava que era uma loucura, que não podia ser na minha casa. Que estavam errados. Não havia razão, não havia motivos. É o constrangimento que tu passa. Mulher, filha, vizinho, porque alguém tem que acompanhar. Por mais cordial que seja a relação, a pessoa entra na intimidade da tua casa às 6h30min da manhã, com pessoas tendo que prender um vizinho. Essas pessoas eu cruzo no elevador todos os dias e tenho vergonha. Aqui eu uso uma frase do Ibsen Pinheiro: "só não sente vergonha o sem-vergonha".
Eu preferia que lá no primeiro ano tivesse uma denúncia, que eu estivesse respondendo. Tenho certeza de que não haveria dificuldade nenhuma, por todas as ações que fiz. A própria prefeitura determinou que o meu substituto fizesse um levantamento de qualquer irregularidade. Não teve absolutamente nada. Mais: a Polícia Federal e o MPF jamais chamaram algum servidor da Secretaria do Meio Ambiente para que prestasse algum esclarecimento, uma informação ou qualquer coisa assim.
E a sua família, como reagiu?
Sofre junto. A tua mulher senta e pergunta: o que houve? A tua filha... Eu tenho um filho que mora no Exterior e me ligava a toda hora. Imagina ele lá, recebendo notícias pela internet, pelas redes sociais, sem saber a versão do pai. Mas o que que houve? E aí tu dizes que não houve nada. Como não houve nada? Te tiram da tua casa, te botam no Presídio Central, pra humilhar. Tu tens um carimbo e vai morrer com esse carimbo.
Como foram aqueles dias dentro do Presídio Central?
É difícil tentar explicar, mas talvez tenha sido uma das experiências mais ricas da minha vida. Tu chegas com um temor bárbaro. O troço é tão absurdo, tão fora da realidade. Quando saímos da Polícia Federal, imaginamos que iríamos para o batalhão da Polícia Militar, na Avenida Bento Gonçalves, mas fomos para o pátio do Presídio Central.
Ficaram junto com criminosos condenados, inclusive com homicidas?
Principalmente homicidas. Claro, se estamos no inferno, vamos tentar pegar um canto menos quente, que o fogo não seja tão intenso, mas é uma cena de horror. Tinha pessoas ali que não resistiam, tinham dificuldade daquela convivência. Nós estávamos em um quarto com 10 camas. Estávamos sendo apresentados uns aos outros. Eu só conhecia três daquelas pessoas, não tinha relação, nunca tinha conversado e estavam todos quase em estado de choque. "Vem cá, o que nós fizemos? O que eu fiz para estar aqui? Ah, eu vou sair amanhã", é a primeira coisa que penso. Quando chegamos lá o então diretor disse: "Olha, não era para vocês estarem aqui".
Mas quem deu a ordem para vocês irem para o Presídio Central?
O (então) secretário de Segurança do Estado, Airton Michels. Isso me disse o delegado da PF, quando eu fui para o interrogatório. Eu disse pra ele: "Vem cá, delegado. Estou aqui e não sei por que o senhor me botou pra dormir na mesma cela que uma pessoa que matou 36 pessoas, que é o Chacal. Matou 36 pessoas". Aí ele disse que a decisão não era dele, mas do secretário da Segurança. O interessante é que a Operação Concutare, uma operação federal, foi anunciada pelo então governador Tarso Genro, que estava em Israel. Ele foi o primeiro a entrar nas rádios para anunciar uma operação que, em tese, era federal. Essa relação, até hoje eu não entendi.
Apenas cumpri uma ordem judicial.
ex-secretário rebate fala de Záchia
Mas o secretário de Meio Ambiente dele tinha sido preso junto. Não é natural que fosse avisado?
Pois é, mas o prefeito José Fortunati disse que não foi avisado. Também estavam prendendo um secretário municipal. Quer dizer, essa relação eu achei um pouco estranha, assim como a decisão do secretário (Michels) de nos colocar no Presídio Central. Até hoje eu não tenho explicação por que aconteceu isso.
O senhor nunca conversou com o ex-secretário Airton Michels depois disso?
Não. Não teria nenhum prazer em conversar com ele. Nem razão para isso. Cada um assume suas decisões e, se ele decidiu por isso, ele deve ter motivo. Não tenho prazer em conversar com quem, de uma maneira exagerada, precipitada, irresponsável, mandou as pessoas para o Presídio Central.
O senhor já tinha enfrentado uma acusação na época da Operação Rodin, não era uma novidade responder a um processo...
Não, não era.
Como ficou a situação na Operação Rodin? Até hoje muita gente pensa que o senhor foi preso pela Operação Rodin.
São duas coisas completamente diferentes. Na Rodin, eu respondi a dois processos, sabendo as razões. No tribunal fui absolvido em primeira instância. O Ministério Público recorreu. Fui absolvido por unanimidade em segunda instância e foi arquivado.
A acusação ali era de que o senhor tinha conhecimento de irregularidades e não fez nada.
Na criminal, que eu talvez tivesse tido benefício, fui absolvido na primeira e na segunda instâncias. A segunda (ação), que é improbidade administrativa, na primeira instância houve o entendimento de que eu realmente não tinha envolvimento mas que, pela função que ocupava, de chefe da Casa Civil, eu teria conhecimento de irregularidades no Detran e não fiz nada. Então foi estipulada uma multa. Eu não tive condenação, não tive perda de direitos políticos. Simplesmente foi imposta uma multa e eu recorri.
Esse ainda está correndo?
Sim, ainda não foi julgado.
Que desfecho o senhor imagina para esse episódio?
Essa é a maior dúvida, maior interrogação. A condenação eu estou cumprindo. A minha vida mudou, minha vida é outra. Eu fui sacado da vida, da vida política, da vida profissional, me reenquadrei numa vida pessoal diferente, não sei a razão, não sei o motivo. E quando terminar nunca vai ser igual, nunca vai voltar igual. É difícil, é duro, quem é que paga essa conta? Essa é a minha pergunta, eu nunca mais... a minha vida foi interrompida com 57 anos, nunca mais eu vou ter a mesma vida.