O slogan “Vidas negras importam”, repetido exaustivamente dentro e fora dos Estados Unidos nos 11 dias de protestos pela morte de George Floyd, deveria ter uma variação brasileira válida para casos semelhantes e para as vítimas da covid-19: Vidas de todas as cores importam. Ninguém vai ficar para semente, mas a morte antecipada por falta de leitos ou porque medidas de prevenção deixaram de ser tomadas não é destino.
Idade e doenças preexistentes não podem ser motivo para naturalizar a morte de mais de 34 mil pessoas, como o presidente Jair Bolsonaro faz com certa regularidade, em sua cruzada contra o distanciamento social. Pessoas com cardiopatias, diabetes, obesidade e até câncer podem prolongar a vida por vários anos, graças aos avanços da medicina.
Dizer que a covid-19 “mata principalmente pessoas com mais de 60 anos”, como se atenuasse a gravidade da pandemia, é retroceder ao tempo em que a expectativa de vida no mundo era de 50 anos e, quem passasse, estava no lucro. Tratar os idosos e doentes como descartáveis é cruel, desumano e eugenista, como se só os jovens saudáveis tivessem o direito de viver.
De alguma forma, o racismo e a covid-19 se cruzaram nos Estados Unidos. Lá, os negros morrem mais (na proporção de infectados) porque falta um sistema público de saúde que proteja os pobres. E mesmo que parte dos negros americanos tenha conseguido ascender na pirâmide social, há milhões que sofrem com o racismo e que agora resolveram soltar o grito preso na garganta. Esse é um dos ingredientes que vitaminaram os protestos.
No Brasil, os negros sofrem diariamente com todo tipo de discriminação. Dizer que aqui não existe racismo é fechar os olhos para as dezenas de mortes de adultos confundidos com bandidos e de crianças vítimas de balas perdidas nas favelas.
O George Floyd brasileiro poderia ser o menino João Pedro, estudante de 14 anos, morto a tiros de fuzil dentro de casa, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, na metade de maio. Ou o músico Evaldo dos Santos Rosa, de 51 anos, metralhado por soldados do Exército, também n o Rio, na Kombi em que estava com a família em 2019. A lista de casos comparáveis ao de Floyd é interminável, mas falta o vídeo da vítima sendo abatida.
No Brasil, os protestos contra a morte de inocentes pela polícia ou por seguranças particulares são escassos e, em geral, não ultrapassam os limites das comunidades em que vivem as famílias enlutadas.
Na pandemia, que ainda não chegou ao pico, não se tem dados confiáveis sobre o perfil de todos os mortos, mas o vírus leva vidas brancas, vidas negras, vidas índias, vidas de todas as cores.