Todo mundo que tinha acima de quatro ou cinco anos em 11 de setembro de 2001 lembra com exatidão de onde estava naquela manhã em que terroristas jogaram dois aviões contra as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York. Com esse coronavírus que parou o planeta como num filme de catástrofe, cada um terá uma lembrança própria do momento em que se deu conta de que estava diante de alguma coisa mais grave do que indicavam as notícias vindas da China sobre um novo vírus. Para mim, a ficha caiu no dia 23 de janeiro, perto das 10h da manhã. Não esqueço porque seria o dia do aniversário da minha avó.
No Gaúcha Atualidade estávamos falando de Wuhan, a cidade chinesa onde aparecera o primeiro caso e que estava adotando uma série de medidas restritivas. Por acaso, eu estivera em Wuhan em 2004 e em 2013. Na véspera, 22 de janeiro, escrevi um texto com o título “O que vi nas duas vezes em que fui a Wuhan, cidade mais afetada pelo coronavírus”. No dia 23, um ouvinte mandou mensagem para o programa dizendo que tinha um irmão, piloto de avião, que morava em Wuhan. Pedi o telefone do piloto e às 9h51 min mandei uma mensagem no Whatsapp dizendo que gostaria de entrevistá-lo. O piloto era Mauro Hart, que se tornaria personagem constante do noticiário nos dias seguintes, relatando a vida em quarentena numa cidade de 12 milhões de habitantes.
Às 10h07min, Mauro respondeu que, sim, poderíamos conversar. E mandou um áudio relatando que acabara de chegar do aeroporto. Fizera seu último voo, Pequim-Wuhan, com apenas três passageiros a bordo e estava oficialmente em quarentena.
— O aeroporto está fechado até 8 de fevereiro. Se as coisas melhorarem eles abrem. Se não, só Deus sabe.
Os pilotos foram liberados até o dia 20. A cidade estava fechada, Trens, ônibus e metrô tinham parado de circular. Aquilo não tinha precedentes. Logo depois, a China anunciou que construiria um hospital com mil leitos em seis dias. Estava na cara que o vírus era diferente de seus antecessores e que algo muito, muito grave, ocorria na China.
Quando o número de mortos começou a aumentar, um grupo de brasileiros implorou ao governo para ser repatriado, como outros países estavam fazendo com seus cidadãos. Alinhei-me com os que pediam a volta do grupo, sem imaginar que dois meses depois estaríamos todos nós na mesma situação. O governo resistiu mas acabou montando uma operação de retorno e Mauro estava no grupo resgatado. Houve resistência, porque brasileiros egoístas achavam que aquele grupo traria o vírus para o território nacional, mas todos foram testados, cumpriram duas semanas de quarentena em Anápolis (GO) com monitoramento rigoroso e foram liberados.
Por que ninguém se deu conta de que o vírus entraria por outras portas que não os brasileiros resgatados em Wuhan? Talvez porque a China, um país sem liberdade de expressão, não tenha transparência nos seus dados, ninguém se deu conta de que o vírus assassino já poderia ter se espalhado quando o governo isolou Wuhan. A peste veio de avião, em voos comerciais, escondida no corpo assintomáticos de pessoas que chegaram da Europa, dos Estados Unidos, dos Emirados Árabes Unidos entre o final de fevereiro e o início de março.
Parece que já se passaram alguns anos desde 23 de janeiro, mas são apenas dois meses e alguns dias. O mundo contabiliza mais de 1 milhão de infectados e cerca de 45 mil mortos.
Por que refazer esse caminho? Para lembrar a capacidade de multiplicação do vírus e reafirmar a crença de que o distanciamento social é necessário para frear seu avanço. Em 22 de janeiro, quando o governo isolou Wuhan, a China tinha 17 mortos pelo coronavírus e 547 casos confirmados. Em pouco mais de 70 dias, o vírus espalhou-se por todos os continentes. Na China, morreram mais de 3 mil pessoas, pelos dados oficiais, e só agora Wuhan está voltando ao normal.
Hoje, o Brasil ainda discute se o isolamento é necessário. Fechamos a semana com 359 mortos e 9.056 casos confirmados. Há uma disputa escancarada de protagonismo no Palácio do Planalto, entre o presidente da República e o ministro da Saúde. Hoje saíram duas pesquisas mostrando que a aprovação de Jair Bolsonaro caiu e que Henrique Mandetta é mais popular do que ele.