Na longa entrevista em que a cúpula do Ministério da Saúde fez o balanço das ações de enfrentamento do coronavírus, o ministro Luiz Henrique Mandetta assumiu de vez o protagonismo que deveria ser do presidente da República. Na contramão do discurso obscurantista de Jair Bolsonaro, que coleciona patacoadas, o ministro mostrou por que nos últimos dias tornou-se o nome mais relevante do governo e, hoje, o único cuja saída provocaria um abalo sísmico no Planalto.
Médico experiente, Mandetta mesclou a segurança de quem sabe do que está falando, estuda e respeita a ciência com a habilidade política que falta a seu chefe. Enquanto Bolsonaro vinha queimando as pontes com governadores, Mandetta propôs a união com Estados e municípios para traçar um plano de ação conjunta para enfrentar a pandemia com inteligência e visão estratégica.
Sem citar o ex-ministro Osmar Terra, que em vídeo amplamente divulgado pelo exército bolsonarista nas redes sociais trata a covid-19 como uma pandemia qualquer e se gaba de ter enfrentado a epidemia de H1N1 como secretário da Saúde do Rio Grande do Sul, Mandetta alfinetou:
— O Brasil virou um país de epidemiologista. Tem gente que acha que sabe tudo porque era gestor na época da H1N1. Eu também era gestor e asseguro que não dá para comparar o coronavírus com a H1N1.
Ao se referir à cloroquina, que vem sendo tratada como a salvação pelo presidente e como panaceia por seus seguidores, Mandetta pediu cautela. Lembrou que as pesquisas ainda são incipientes e, sacudindo uma caixinha imaginária, alertou que não se pode sair prescrevendo cloroquina em porta de hospital e chamou a atenção para os efeitos colaterais, que vão de problemas cardíacos ao risco de paralisação dos rins e do fígado.
Sem demonstrar preocupação com a patrulha bolsonarista, criticou as carreatas que pediram a retomada da atividade econômica na sexta-feira e endossou a campanha para que as pessoas que puderem fiquem em casa, para tentar conter a disseminação do vírus enquanto o sistema de saúde se prepara para o aumento do número da demanda por leitos de UTI.
Sentado entre o secretário de Vigilância em Saúde, Wanderson de Oliveira, e o o secretário-executivo, João Gabbardo dos Reis, o ministro repetiu as três palavras que regem seu trabalho: ética, disciplina e foco. Apelou aos governadores e prefeitos para que não saiam adotando medidas que podem prejudicar a logística no atendimento à população e insistiu para que o plano global seja construído em conjunto.
Também sem citar o governador de São Paulo, João Dória, avisou que o Ministério da Saúde não vai aceitar que os Estados confisquem equipamentos de proteção individual, porque é preciso pensar no Brasil inteiro. Na entrevista, sobraram farpas até para o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que se gaba de ter os recursos necessários para atender seu país. Ressaltou que o problema é do mundo.
Mandetta só manifestou concordância explícita com Bolsonaro em um ponto: que é preciso pensar na economia, para que as pessoas não morram de fome. Mas ressaltou que saúde e economia têm de ser pensadas de forma conjunta no plano de enfrentamento ao coronavírus.
Com humildade, o ministro reconheceu que não tem todas as respostas. Que, se for preciso, fará correções de rumo ao longo do processo. Previu que sua equipe será cobrada por subestimar ou por superestimar a necessidade de recursos, mas que vai conduzir o Ministério ouvindo os cientistas e os operadores do sistema de saúde. Que não hesitará em pedir a ajuda de empresas privadas para fazer chegar os equipamentos e insumos que precisam ser importados. E avisou que, para salvar vidas, atropelará a burocracia, mesmo que depois venha a cobrança dos órgãos de controle.
Diante dos questionamentos sobre sua possível saída do Ministério, reafirmou o que dissera em entrevista anterior: só sai se o presidente não quiser mais seus serviços ou se cair doente. A performance indica que Mandetta está calçado. Se não pelo núcleo militar do governo, pela opinião pública. Hoje, o custo de sua eventual demissão seria altíssimo para Bolsonaro.