O jornalista Vitor Netto colabora com o colunista Rodrigo Lopes, titular deste espaço.
Cinco mulheres serão homenageadas na edição de 2024 do Prêmio Nansen do ACNUR, órgão que representa a agência de refugiados da ONU. São quatro premiadas em categorias regionais e uma na esfera global. Esta última, a principal da premiação, ficará com a Irmã Rosita Milesi, gaúcha natural de Farroupilha, que faz um trabalho voltado para a assistência aos refugiados no Brasil.
Religiosa da Congregação das Irmãs Scalabrinianas, cursou Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e tem mestrado em Migração e Refúgio na Universidade Pontifícia Comillas (Madri, Espanha). Atualmente, é diretora do Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH).
O Prêmio Nansen homenageia um indivíduo ou organização que dedicou seu tempo e fez a diferença para proteger pessoas deslocadas à força de suas casas. A cerimônia de premiação ocorre em Genebra, na Suíça, na próxima segunda-feira (14).
Quem é Rosita Milesi?
Desde jovem, já aos nove anos, fui residir com as irmãs no colégio em Farrapilha fundamentalmente para continuar meus estudos e também com alguma ideia, evidentemente na época ainda não definitiva, de talvez seguir com as irmãs. Quando eu completei os estudos básicos, decidi que realmente queria seguir a vida religiosa na Congregação e fui para um noviciado, com apenas 15 anos de idade. Passei o tempo de preparação interna, que tem de dois anos e meio em geral, e assim que completei 19 anos fiz os votos, no dia 11 de fevereiro de 1964, dentro do Instituto São Carlos, em Caxias do Sul. Assim que fiz os votos, fui designada para trabalhar em escolas. Naquela época não trabalhávamos diretamente com migrantes ou refugiados, então eu trabalhei durante dez anos na área educacional, depois 12 anos junto com uma equipe de irmãs do Hospital Mãe de Deus e após esse período, fui convidada pela Madre-Geral para ir a Roma passar um tempo e preparar a fundação de um centro de estudos migratórios da Congregação. Passei dois anos e ao retornar fui designada para ir a Brasília e aqui viabilizar um centro de estudos. Simultaneamente, criei o Departamento de Direito de Cidadania, que já nessa época então estaria voltado especificamente para apoiar, ajudar, assistir, orientar migrantes e refugiados na obtenção de seus documentos. E esse departamento foi crescendo bastante, porque havia muitas pessoas que precisavam desse apoio para a documentação. Para viabilizar melhor esse trabalho, tive a ideia de criar núcleos de atendimento em várias cidades do Brasil, porque os migrantes não tinham como se deslocar a Brasília para resolver algum problema, e então através dos núcleos viabilizávamos essa assistência e orientação aos migrantes que estavam em muitas cidades do Brasil. Não eram tantos, evidentemente, próximo ao que é agora, mas havia pessoas que estavam há muito tempo aguardando a possibilidade de documentar-se. Nesse trabalho fui me dedicando bastante e foi crescendo.
Quando vocês criaram esses núcleos, era em que ano e quais cidades?
Iniciei a criar os núcleos em 1989. Inicialmente, criamos um núcleo em Porto Alegre, São Paulo, no Rio de Janeiro, em Campo Grande, em Manaus, acho que no Paraná, em alguns lugares onde os migrantes que nos procuravam ou procuravam organizações para ajudá-los na documentação. Esses núcleos também foram crescendo com o tempo, fomos ampliando e chegou um momento em que o trabalho de assistência aos migrantes estava muito volumoso e, portanto, se fazia necessário pensar em alguma instituição específica para essa finalidade. E além desse aspecto, ocorre também que em 1996 o governo do Ministério da Justiça encaminhou ao Congresso Nacional uma proposta de lei de refugiados e eu tive a oportunidade de colaborar no acompanhamento desse projeto de lei, na preparação do seu texto também, juntamente com o alto comissariado das Nações Unidas para Refugiados, e acompanhar durante a tramitação no Congresso Nacional. Finalmente ele foi aprovado, inclusive com uma ampliação do conceito de refugiado. Não queríamos que o conceito de refugiado ficasse só nos termos tradicionais da Convenção de Genebra de 1951, entendíamos que era importante ampliar esse conceito para contemplar um conceito, sobretudo latino-americano, que tratava dessa temática e que consta na chamada Declaração de Cartagena. Conseguimos incluir no artigo legal a ampliação do conceito e finalmente em 1997 foi aprovada a primeira lei de refugiados nacional do Brasil. A partir disso sentimos mais ainda a necessidade de acompanhar as pessoas e apoia-las nos processos de sua documentação e por isso a partir de 1997 já começamos a pensar numa instituição. Em 1999 fundamos o Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), do qual eu sou diretora.
Qual o objetivo do Instituto?
A finalidade específica é atendimento a migrantes e refugiados. Esse atendimento em primeiro lugar contempla a questão da documentação, de ajuda-los a obterem a sua documentação para a estada legal no Brasil e para que possam realmente estabelecer-se aqui com tranquilidade, com serenidade e poder então aceder ao trabalho, à escola, enfim, a todos os benefícios que estão disponíveis na legislação e nas políticas públicas no Brasil. Portanto a documentação é ponto central da nossa assistência. Então o IMDH tem esse foco central, mas não o único. Nós temos uma dimensão também da área social, de encaminhamento para os benefícios públicos, de orientação para acesso a questões que sejam de área social mesmo. Depois, nós temos uma área que dá bastante atenção no sentido de que as crianças estejam na escola, se há alguma dificuldade, se há algum problema, buscamos apoiar as famílias para que consigam, de fato, que as crianças tenham acesso à educação. Também conversamos com as escolas, as regionais de ensino, para viabilizar esse acesso quando é necessário. Nós chamamos de integração comunitária e econômica, que seria ajudar os migrantes a conhecerem o acesso ao mercado de trabalho, ajudá-los a elaborar seu currículo, ajudá-los a entender a legislação laboral do Brasil e também os direitos. Então, nessa área é importante porque as pessoas buscam ansiosamente poder trabalhar. Portanto, o acesso a isso supõe, em primeiro lugar, a documentação, em segundo lugar, realmente acesso ao mercado laboral. E temos também uma outra área que atuamos muito, que nós chamamos de incidência, ou seja, atuar no Congresso Nacional em ambientes onde se faz necessário defender e argumentar, propor avanços na legislação e nas medidas que possam facilitar ou favorecer o acesso das pessoas que vêm de outros países, migrantes e refugiados, para que tenham acesso aos direitos habituais e que possam ter, de fato, uma vida na proporção do que realmente merecem ou precisam. São pessoas que vêm muito angustiadas, porque perderam tudo, deixaram para trás. A guerra destruiu, ou já não tinham em país, ou as catástrofes.
E ao olhar o início dos núcleos para o trabalho de hoje. Quais as principais diferenças?
A grande diferença está no volume de pessoas. Naquela época havia, sim, mas não eram tantas e, em geral, eram procedentes de alguns países da África ou, na verdade, bastante também de outros países aqui da América Latina. Basta recordarmos, por exemplo, há quantos anos que há uma migração paraguaia para o Brasil, há uma migração boliviana para o Brasil e essas pessoas, muitas vezes, ficavam sem documentos por não terem como buscar, por não terem uma legislação também que lhe garantia esse acesso. O trabalho era tanto de ver de que forma essas pessoas poderiam obter documentação e também trabalhar para que houvesse legislação de avanço no sentido de facilitar essas pessoas, com a entrada, digamos assim, com a legislação do Mercosul, hoje têm acesso à documentação. Enfrentam muitas dificuldades, é verdade, muitos problemas, mas a legislação lhe assegura esse acesso. Naquela época não era assim, havia mais dificuldades e, embora fossem menos as pessoas que nos procuravam, a demanda era mais complexa e também éramos bem menor número as organizações que se dedicavam a esse trabalho. Em Porto Alegre, por exemplo, desde aquela época havia organizações muito atenciosas para com os migrantes, mas não era assim em todo o país, em várias localidades do país não havia quem nos apoiasse, quem nos ajudasse. A diferença eu acho que está mais em termos de que hoje, numericamente, são muito mais expressivos os números das presenças, muito diversificados e procedentes de muitos países. Em 2022, nós atendemos aqui no IMDH, entre Brasília e Roraima, pessoas de 72 diferentes nacionalidades, para ver como é diversificada hoje a presença de pessoas que, e muitas dessas pessoas, vêm em busca de proteção, porque nos seus países ou há uma grave e generalizada violação de direitos humanos, ou há uma guerra, ou há desastres que forçam as pessoas totalmente a buscar outra alternativa, como é o caso do Haiti, por exemplo. Nós recebemos muitos haitianos nos anos de 2011, 2012, 2013, e os anos seguintes, por causa do terremoto, mas em outras regiões também. As causas hoje são muito diversas, tem muito mais guerras, muito mais conflitos, muito mais violação de direitos humanos, muito mais questões climáticas que afetam profundamente as populações, tudo isso se sente gravemente hoje, e se compararmos com 35, 40 anos atrás, realmente não havia essa realidade. Então, os desafios são maiores, números são mais expressivos, e também é preciso avançar muito, para que de fato a solidariedade internacional com as pessoas que precisam de proteção, que são forçadas a deixar seus países, seja realmente efetiva e acolhedora em nosso país.
Hoje a sede fica em Brasília, mas tem braços em quantos Estados?
O IMDH só tem aqui e em Roraima, mas nós criamos, a partir daqueles núcleos, vários pontos do Brasil, quando foi em 2004, nós reunimos essas organizações dos núcleos da época, e decidimos em conjunto criar uma rede chamada Rede Solidária para Migrantes e Refugiados, e hoje congrega aproximadamente 70 organizações dos mais variados Estados do Brasil. Embora não sejamos nós que vamos dar diretamente o apoio às organizações, mas a rede em si que nós articulamos e continuamos motivando e informando com a legislação, com reuniões, com encontros, ela está muito mais, digamos assim, capilarizada através dessas organizações que integram a chamada Rede Solidária.
Como a senhora recebeu a notícia que ganharia o prêmio?
Eu não sabia que o Acnur estava propondo o meu nome para esta premiação, porque em outra ocasião o Acnur já tinha conversado sobre o assunto, e eu disse que eu não queria concorrer, porque eu não vejo que eu tenha esse alcance, essa projeção, ou essas grandes colaborações que me fizessem merecedora desse prêmio. Mas o Acnur fez essa eleição e concluiu que este ano eu seria a premiada internacional. Eu acolho isso, primeiro, com muita preocupação, porque, volto a dizer, eu não me considero que esteja à altura de outras pessoas que, em outros tempos, sempre receberam esse prêmio e pelo valor que ele tem, mas eu gosto de dizer que eu divido, ou eu atribuo, a muitos atores, aos refugiados, aos milhares que eu já tive a oportunidade de apoiar e que sempre estiveram também comigo, reconhecendo o trabalho, sendo documentados, conseguindo organizar sua vida. Às muitas organizações sociais que são parceiras e que nos animam também nessa caminhada, à minha família, que também sempre aprecio muito, à congregação das Irmãs Scalabrinianas, que é o berço da minha caminhada nessa área junto aos migrantes e refugiados, a organizações internacionais, a órgãos de governo, há muitos atores que, ao longo desses anos de trabalho, confiaram em mim e me deram a oportunidade de estar colaborando modestamente, mas somando forças com tantos outros que caminharam comigo e com quem eu pude caminhar. Pensando que esse prêmio simboliza o reconhecimento de todos aqueles e aquelas que ao longo desses anos sempre estiveram comigo ajudando nessa caminhada, então eu aceito, porque esse ponto já está definido, que vou ser premiada com esse prêmio Nansen, que foi uma grande figura após a Segunda Guerra Mundial, foi o primeiro dirigente-chefe da Liga das Nações, e, à época, teve, entre tantas iniciativas, uma brilhante que foi criar um passaporte específico para os refugiados e que precisavam de um documento para serem realocados no mundo e para poderem retomar a sua trajetória.
A senhora se emociona ao falar do seu trabalho?
Quando eu falo dos refugiados, eu sempre me emociono, porque a gente vê e sente quanto é sofrido o caminho que eles passam. E são pessoas que não deram causa àquilo que eles estão sofrendo. Eles resultam de tantas questões que a falta de sensibilidade, a destruição da natureza, as guerras... Parece que às vezes a vida, em certas circunstâncias, vale menos do que a conquista de alguns metros de território. Eu gosto de pensar nessas pessoas e também nas milhares de crianças. Quase a metade dos refugiados do mundo são crianças adolescentes, que evidentemente não deram causa a nada. Assim como todos os refugiados, migrantes e forçados. E essas crianças sofrem, e eu fico impressionada quando tenho algumas crianças aqui que vêm para atendimento, ou então na Casa Bom Samaritano, que é onde nós temos uma casa de acolhida aqui em Brasília, as crianças vêm correndo e me chamam de avó. E eu fico pensando, coitadas delas. Elas estão aqui, a avó está lá no país de origem, famílias separadas. Então a gente se emociona ao ver e sentir o quanto essas pessoas realmente sofrem. Enquanto também elas são nutridas por uma esperança, por um fé, por uma vontade, uma garra incrível de vencer, de começar novamente, de acreditar que estão encontrando um lugar onde possam reconstruir a própria vida e viver um pouco mais em paz.
Parte da população vê os migrantes como invasores. Como explicar o real significado?
É tão evidente que a mobilidade, o deslocar-se, faz parte da vida humana. Muita gente viaja, vai para outros países, porque deseja fazer, porque pode fazer. Se essas pessoas podem e desejam fazer ou fazem, por que não podem deslocar-se aqueles e aquelas que se permanecerem onde estão, a vida deles está em perigo? É muito natural que a gente faça, não de nenhum esforço, mas simplesmente um ato de solidariedade, um ato de humanidade, para acolher essas pessoas e ver que não estão roubando o trabalho de ninguém, não estão tirando espaço de ninguém. São pessoas que vêm dispostas a contribuir com o ambiente onde elas se encontram e agradecidas por terem um ambiente que as acolhe. Pessoas que trabalham, pessoas que querem contribuir com o país. E são as migrações, os refugiados, não são problemas, são uma oportunidade de crescimento cultural. Quantas coisas nós gostamos de apreciar que vem, às vezes, de outros países, desde gastronomia, moda e roupas. Por que esses bens são bem-vindos quando os conhecemos, quando os apreciamos, e as pessoas não são? Quanto o dinheiro circula pelo mundo, o comércio, as mercadorias e por que pensar que, nisso tudo, só a pessoa não tem direito de mover-se ou de buscar, pelo menos, uma alternativa de salvar a própria vida ou de melhorar um pouco a própria vida. E, sobretudo, às vezes, de fugir de circunstâncias que são extremamente graves, que estão extremamente pesadas. Então, penso assim, que se nós conseguirmos realmente incorporar em nós que essas pessoas são seres humanos, e tanto quanto nós, essas pessoas buscam, tanto quanto nós, algo melhor na vida, ou, muitas vezes, nem algo melhor, ou pelo menos salvar a própria vida. Se a gente olha também as imigrações brasileiras, nós hoje aqui temos, nós que não chegamos a dois milhões de imigrantes, pensando em todas as nacionalidades, nós temos mais de dois milhões e meio de brasileiros fora do Brasil. Então, não há por que pensar que só podem ir para buscar coisas melhores, mas ninguém pode vir para encontrar um lugar onde possa reconfortar a sua vida, onde possa recomeçar a sua vida, onde possa encontrar um pouco de paz e de sentir-se útil na comunidade, sentir-se acolhido, sentir-se que, de fato, pode crescer. Tanto a comunidade local com a riqueza que essas pessoas trazem, riqueza cultural e de trabalho. De fato, se nós olharmos a nossa história, principalmente nós do Brasil, é bem característica. Então, que tenhamos esse olhar, não de pena. O Papa Francisco fala assim, ninguém é coitadinho, nenhum migrante ou refugiado é um coitadinho. Não, é um ser humano que vem em busca de um espaço, em busca de condições de vida e em busca de encontrar espaço para salvar a própria vida e para poder reconstruir tudo aquilo que perdeu ou que foi tirado devido às guerras, aos desmandos humanos, às violações de direitos, etc. Nós temos quatro palavras fundamentais que são do Papa Francisco, que é acolher, proteger, promover e integrar os migrantes e os refugiados. Se pensamos nessas quatro palavras, realmente conseguimos desenvolver em nossa mente, sobretudo em nosso coração e na sociedade onde vivemos, um espírito positivo, um espírito de efetiva acolhida e de espaço para que possamos conviver em paz com todas essas pessoas que chegam e que não teriam outra forma, às vezes, de salvar a própria vida se não os acolhêssemos em nosso lar.
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