Carmel Gat, 40 anos, terapeuta ocupacional de Tel Aviv, estava visitando seus pais no fatídico 7 de outubro no kibutz de Beeri, quando o ataque do Hamas ocorreu. Sua mãe, Kinneret, foi morta. Carmel foi levada cativa, assim como seu irmão, Alon, a cunhada Yarden Roman-Gat e a sobrinha, Geffen, então com três anos. Durante a ação terrorista, Alon e a filha conseguiram escapar. A esposa, Yarden, também fugiu, mas foi recapturada. Ela foi mantida refém em Gaza e libertada em 29 de novembro, como parte do acordo de cessar-fogo mediado pelo Catar. Carmel também foi levada.
Em 1º de setembro, as forças armadas israelenses anunciaram a morte e recuperação do corpo em um túnel do Hamas em Rafah, no sul da Faixa de Gaza. De acordo com os militares, Gat foi assassinada junto com outros cinco reféns por seus captores pouco antes de serem encontrados.
Maya Roman, prima de Yarden e cunhada de Carmel, recebeu a coluna em seu apartamento no norte de Tel Aviv no sábado (5) para essa entrevista. Leia a seguir.
Como será esse 7 de outubro, um ano depois dos atentados terroristas?
É muito difícil. Durante muito tempo estivemos pensando no que ocorreria quando completasse um ano. Não consigo acreditar que já tenhamos chegado aqui. Temo que haja muitos memoriais ou cerimônias. Mas, para nós, nada acabou porque ainda há reféns por lá. Por um lado, nossas famílias também perderam entes queridos em 7 de outubro e queremos lembrá-los. Entendemos porque devemos lembrar de tudo o que ocorreu. Por outro lado, você só consegue se lembrar de algo quando está terminado e para muitas famílias isso não está terminado. Especialmente agora, com o que ocorre no Líbano, parece que mesmo aqui, em Israel, as pessoas começaram a esquecer-se dos reféns. É um sentimento muito difícil, especialmente para nós que tivemos um membro da família libertado e o outro assassinado há apenas um mês. Está muito fresco na minha mente, e é uma grande sensação de fracasso. Durante um ano trabalhamos arduamente defendendo, falando com a mídia, com políticos, tentando de tudo. E tudo terminou em um segundo. È muito difícil aceitar isso. Acho que algumas famílias estão de luto, outras estão lutando e ainda aquelas que estão em estado de choque.
Sua família teve altos e baixos: a tragédia do sequestro, felicidade quando Yarden voltou, e depois a confirmação da morte de Carmel. Como tem lidado com tudo isso?
É como você disse, é uma montanha-russa emocional. Não sei como lidamos. Por muito tempo, lidei com a negação. Quando você trabalha em alguma coisa, é mais fácil não pensar nisso. Focamos muito no trabalho, no que podemos fazer: demos entrevistas, nos reunimos com políticos. Foi nisso que que nos concentramos e tentamos não pensar no que está acontecendo com Carmel neste momento. Quando Yarden, meu primo, voltou, foi um momento de alegria incrível. E é estranho que a sua maior felicidade possa vir do seu pior pesadelo. E é verdade, todos nós sentimos alegria: vê-la reunida com a filha é inacreditável. Poder brincar com ela e saber que ela está de volta ao nosso convício. É realmente uma bênção. Ao mesmo tempo, poderia facilmente não ter acontecido. Yarden facilmente ainda poderia estar lá, e ainda faríamos parte das famílias que lutam para trazer as pessoas de volta. Poderíamos ter sido aquela família. E, novamente, em nossa família, tivemos um membro que era refém e foi assassinado. Então você tem esse conhecimento físico, em primeira mão, de quão próximas todas essas coisas estão. Isso mostra todas as coisas da vida que você às vezes tenta deixar de lado, sem pensar muito. Isso força você a entender que muito disso é sorte. Mas, novamente, também que pode terminar de forma diferente. É muito difícil, no caso de Carmel, que foi assassinada, é sabermos que não precisava ter sido assim. Sabemos que ela poderia estar em casa, porque Yarden está. As pessoas, às vezes, me dizem: "Bem, não conseguimos chegar a um acordo". "Como você diz que podemos fazer um acordo com esse tipo de pessoa?" Eu digo a eles que tínhamos um acordo. Foi assim que Yarden voltou para casa. É por isso que sei que isso pode acontecer e sei quanta felicidade pode advir disso. Todas as outras famílias também merecem se sentir assim.
Um novo acordo - e não a pressão militar - é a melhor melhor forma de trazer reféns para casa?
Eu sei que é porque, novamente, Yarden voltou devido a um acordo, e Carmel foi assassinada por causa da pressão militar. Quando os terroristas viram o exército se aproximando, os assassinaram. A pressão militar não está funcionando. Mesmo os reféns que foram libertados devido a missões militares, em operações que levaram meses de planejamento. Você está falando sobre liberar quatro pessoas em uma operação que levou três ou quatro meses para ser planejada. Ainda há cem reféns em Gaza. Nunca os recuperaremos se esse for o percentual. Ao contrário do acordo, quando trouxemos quase cem pessoas de volta para casa com suas famílias. Para mim, é muito óbvio que um acordo é a melhor maneira de trazê-los para casa.
Você culpa o governo pelo fracasso? No passado pela falha de inteligência e, agora, pela operação que levou à morte de Carmel?
Eu culpo o governo por não assinar um acordo, quando podiam. Netanyahu tenta dizer que está esperando por um acordo melhor ou que não poderiam realmente assinar o acordo. Mas está apostando com as vidas dos reféns. Ele disse: "Eu sei como fazer um acordo acontecer, confiem em mim". Bem, já faz um ano, e ele não conseguiu fazer outro acordo. Para mim, isso é fracasso. Não culpo os soldados por fazerem tudo o que podem e por tentarem encontrar Carmel. Não falávamos sobre isso inicialmente. Mas estávamos muito preocupados de que isso (que o Hamas executasse reféns diante da aproximação de tropas) acontecesse. Os terroristas não se importam em mantê-los vivos. Se eles sentem que vão perder, eles os matam. Por que não? Eles fizeram isso. Nosso governo continuou agindo como se, sim, houvesse tempo, podemos esperar até encontrarmos um acordo melhor. Para mim, a culpa é deles. Claro, eu culpo acima de tudo o Hamas e as pessoas que realmente assassinaram Carmel e nos colocaram nessa situação terrível. Mas acho que nosso governo poderia tê-la salvado em várias ocasiões antes disso.
Você teme que o novo front da guerra contra o Hezbollah possa tirar o foco dos reféns?
Definitivamente. Já aconteceu. Se você olhar as notícias agora, os reféns são muito menos comentados em Israel e ao redor do mundo. Todo dia há algo novo para cobrir. Então eles (a imprensa) estão cobrindo mísseis do Irã, mísseis no Líbano. Os reféns se perdem na conversa. Tivemos um ano terrível nesse país, e as pessoas estão tentando encontrar qualquer coisa boa que possam. Então, quando parece estamos tendo sucesso em nossa guerra no Líbano ou a questão dos pagers (ação que eliminou líderses do Hezbollah) ou mataram Hassan Nasrallah, acho que as pessoas sentem alívio. Entendo isso. E é mais legal sentir que, finalmente, as pessoas que vivem no norte de Israel voltarão para suas casas. É melhor pensar sobre isso e não no fato de que ainda há reféns por um ano inteiro em pequenos túneis sendo tratados de maneira desumana e que podem morrer todos os dias. É muito difícil pensar sobre isso. E as pessoas sempre preferem pensar em outras coisas.
Yarden contou algo dos dias em cativeiro que possa fazer com que as pessoas no Brasil entendam o quão terrível é o Hamas?
Yarden teve muita sorte porque ela não foi fisicamente machucada. Não é o caso de todos. Ela fala árabe, foi mantida sozinha. Então, ela usou todas essas coisas a seu favor. Tentou fazer com que seus guardas sentissem mais empatia por ela. Eles falavam com ela. Quando ela nos contou, disse: "Eu não queria falar com eles, mas eu tinha de fazer isso porque era minha maneira de sobreviver". Você não tem o privilégio de chorar ou gritar. Não querem te ajudar ou te manter segura. Então, você tem de fingir que está bem e não ser um grande problema para eles. Ela contou: "Eu tive de dizer a eles o que eu estava pensando, mas não podia realmente dizer o que eu estava pensando". Todos os dias, ela sabia que poderia ser morta ou estuprada. Todos os dias ela teve de se tornar mais empática com essas pessoas, por 54 dias. Ela nos contava que as únicas vezes em que sentia algum tipo de consolo era quando estava dormindo. Podia ficar só consigo. Todas as outras vezes, 24 horas por dia, sete dias por semana, era observada e tinha de pensar sobre o que eles estavam olhando. Você sabe, eles a fizeram usar um hijab (véu islâmico). A certa altura, disseram: "Você não precisa mais usar o hijab". Ela disse não! "Vou continuar usando o hijab". Não queria que eles vissem algo com o qual não estavam acostumados, que talvez parecesse diferente. Uma das coisas que ela nos disse foi que havia três guardas. Um deles tinha mestrado em Direito. Normalmente, não achamos que os terroristas do Hamas são assim. Ela disse que eles eram devotados à ideia de uma República islâmica. Ela perguntou: "Por que vocês estão fazendo isso?" E eles disseram: "Queremos um Estado islâmico". Eles até disseram a ela você pode viver em nosso estado islâmico. Vamos matar todos os judeus. Mas será um Estado islâmico. E será governado pelas leis do islamismo. É difícil entender que este é um grupo terrorista. Muitas pessoas dizem: "É pela libertação palestina". Isso não é um problema para eles. Eles querem um Estado islâmico global. Uma das coisas que Yarden nos disse foi que a primeira vez em que chorou quando saiu de lá foi quando ela foi ao banheiro no Egito. Porque ela disse que, finalmente, poderia ir ao banheiro e ficar lá o tempo que quisesse. "Eu poderia fazer o que quisesse", disse. Ninguém iria bater na porta e perguntar o que estava acontecendo lá dentro. E Yarden estava melhor do que muitos outros reféns. Carmel, sabemos, foi mantida em um túnel em que não conseguia ficar de pé. Ela não conseguia ver a luz do dia. Ela tinha de fazer as necessidades fisiológicas em um balde com outros seis reféns. Yarden ficou lá por dois meses e isso vai afetá-la pelo resto da vida. E há pessoas que já estão lá há um ano. E não sabemos quando vão voltar para casa.
No Brasil algumas pessoas, inclusive o presidente Lula, dizem que tanto o Hamas quanto Israel são responsáveis pela guerra. O presidente Lula. Como você avalia essas declarações?
É uma maneira muito superficial de olhar para a situação. É verdade de certa forma, mas se você estiver olhando as coisas em um nível muito superficial. Você poderia dizer: "Eles (os terroristas) atacaram e então Israel continuou a atacar. Então, ambos os lados poderiam ter escolhido fazer outra coisa". O que as pessoas não veem é que não se está sugerindo outras formas de ação para Israel. Sou a favor de que se acabe com a guerra e se traga os reféns de volta. Embora isso exija que Israel desista de muitas coisas, devemos fazer um acordo tanto com o Líbano quanto com o Hamas, porque precisamos recuperar os reféns. E teremos que nos preocupar com questões de segurança daqui para frente. Quando digo isso às pessoas em Israel, sei que estou pedindo muito a elas. Estou pedindo que desistam da segurança em um sentido muito real. Muitas vezes, as pessoas que não vivem em países que fazem fronteira com nações terroristas entendem. Israel é pequeno e Gaza e Líbano estão bem aqui ao lado. Não é como o Brasil. Tudo é tão perto... Se permitirmos que o Hamas permaneça em Gaza, significa que há um perigo real muito, muito perto de nós. Já aconteceu há um ano, mataram milhares de pessoas e fizeram centenas de reféns, e pode acontecer novamente. Não desistiremos de ninguém, de nenhum refém, mesmo que isso signifique que tenhamos de correr mais riscos, mesmo que isso signifique desistir de coisas que vão tornar as coisas mais difíceis para nós. É disso que se trata Israel. Sempre foi difícil viver aqui. Meus avós vieram do Holocausto. Eles poderiam ter ido para os Estados Unidos. Vieram para cá. Sabiam que seria difícil, que seria perigoso. Mas eles queriam construir esse lugar. Para mim, para proteger as vidas dos reféns vale a pena desistir de algumas dessas coisas. Mas isso exige que realmente desistamos de algo muito básico, do nosso senso de segurança. Acho que, se o Hamas libertasse os reféns, teríamos encerrado esta guerra. E sabemos que o Hamas teve várias oportunidades de assinar um acordo de reféns e recusou porque quer permanecer no poder. Não porque quer proteger as vidas dos cidadãos em Gaza, mas porque quer permanecer no poder e não deixar a Autoridade Nacional Palestina ou qualquer outro tipo de entidade assumir Gaza. A razão pela qual não assinamos o acordo é porque estamos tentando manter nossa segurança. Netanyahu não quer tirar nossas tropas de Gaza porque ele está preocupado com o fato de que se o Hamas permanecer lá, ainda estaremos sob fogo. Há uma diferença: estamos travando esta guerra porque queremos estar seguros em nosso país. Eles (o Hamas) estão travando esta guerra porque estão comprometidos em criar um país islâmico. Ao mesmo tempo, eu sinto que nosso governo atual não está fazendo o suficiente para acabar com essa guerra e assinar um acordo para libertar os reféns. Na situação atual, estamos presos entre nosso governo e o Hamas. Quanto aos cidadãos, tanto aqui (em Israel) quanto em Gaza, eu acho, querem apenas viver em paz. Sim, há semelhanças, mas você não pode dizer que é a mesma coisa.
Leia aqui outras colunas.