O jornalista Vitor Netto colabora com o colunista Rodrigo Lopes, titular deste espaço.
Até o final da semana, líderes globais estão em Nova York com os olhos atentos à Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). O presidente Lula foi o primeiro a discursar, quando abordou temas como terrorismo, reformas internas da organização e mudanças climáticas.
A coluna conversou com Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa, uma organização que atua para o desenvolvimento de políticas climáticas e em frentes de combate aos impactos socioambientais, e que esteve na Assembleia durante a semana.
Como você avalia o discurso e a participação de Lula na ONU?
Acho que o discurso rompeu com uma postura do Brasil que costumava ser um pouco vitimista. Não só presidentes de esquerda, mas de direita, ultimamente, vinham à Assembleia Geral para, ao mencionar questões climáticas ou ambientais, sempre trazer, externalizar a culpa. Acho muito importante que o atual presidente tenha reconhecido os desafios, o que aconteceu no Rio Grande do Sul, o que está se vivendo agora na Amazônia e no Pantanal, e ao mesmo tempo que tenha reconhecido a nossa responsabilidade coletiva, Brasil e o resto do mundo. Isso foi importante, para quem acompanha essas assembleias ano a ano, é bastante positivo. Porque somos uma das 20 maiores economias do mundo. Estamos entre os cinco maiores emissores, justamente por conta da questão do desmatamento. É positivo que a gente vá além. Por outro lado, o presidente fez, pela primeira vez, uma menção à questão dos combustíveis fósseis, que são, globalmente, a causa principal do problema. Ele falou de nos tornarmos menos dependente. Aqui, acho que ele deixou a desejar, porque usar um pouquinho menos de petróleo, gás e carvão, não resolve. Vamos vier o mundo com 1,2º mais quente. Estamos vendo o quão difícil é. Agora, imagine com 1,5ºC a mais, 2ºC a mais na temperatura global. Então, deixou a desejar nesse ponto, sim.
O presidente faz acenos em prol de políticas ambientais e continua utilizando esses mecanismos como a exploração de combustíveis fósseis. Não é contraditório?
Essa é uma contradição que precisa ser resolvida. O presidente sacou que a população brasileira não vai mais aceitar esse tipo de incoerência. Porque tem consequências reais. Estamos falando de moléculas. Você está reduzindo as emissões? Está ajudando os outros países a reduzirem suas emissões? Ou está continuando a exportar e, aliás, expandindo a produção e a exportação de petróleo, por exemplo? Estamos expandindo. O Brasil está em rota para se tornar o quarto maior produtor de petróleo até 2030. Então, não é só uma contradição. É uma coisa que elimina a outra, cancela a outra. Isso tem consequências muito reais e estamos sendo impactado por isso. Esse é o ponto que precisamos resolver. O que está faltando é Lula ter ousadia e coragem justamente nesse ponto de esclarecer, dialogar conosco, dialogar com os brasileiros, estabelecer um cronograma para essa transição. Porque esses mercados já estão diminuindo. Você já vê em vários países do mundo, inclusive os principais países que importam petróleo do Brasil, já estamos vendo algumas transformações fortes. Estou falando de Estados Unidos e China. O presidente pode fingir que não está vendo, mas isso já está batendo na nossa porta. Acho que requer ousadia e resolutividade.
Na ONU, Lula anunciou que Brasil apresentará um NDC — Contribuição Nacionalmente Determinada — ainda neste ano, alinhada com a Missão 1,5°C. O que é NDC?
É uma espécie de plano, um compromisso que todos, absolutamente todos os países do mundo, vão ter de apresentar. Porque a partir da soma de cada esforço, de cada compromisso colocado na mesa, vamos conseguir saber se dá para chegar em 1,5ºC ou se vai ultrapassar isso. Essa soma é coletiva. Então, um país fazer direito não vai resolver. Precisamos de vários países colocando bons planos na mesa. Ela é uma contribuição, um documento formal que o país vai, cada país vai escrever. Ele tem que dar metas de redução de emissões até 2035. E tem que incluir todos os setores da economia, tem que explicar se consultou a população ou não, porque não basta ir lá e dizer, ah, tá, eu vou reduzir 100% amanhã. Sabemos que não é viável. Tem que ter aí toda uma explicação das contas por trás e também um compromisso de mobilizar o setor privado, população, os governos subnacionais para que eles possam implementar, que não vai depender só da caneta presidencial ou só do governo federal, muito pelo contrário. Então, é um documento que vai até além de um governo, é um documento de um país, da nossa sociedade e é por isso que é tão importante que saia uma coisa boa, porque não queremos estar mal representado nessa corrida climática. O prazo para a entrega é em fevereiro de 2025.
E é possível alinhar à Missão 1,5°C?
Por que se está falando tanto em alinhar-se ao 1,5ºC? Porque, especialmente os países do G20, o Brasil é o atual presidente desse grupo das 20 maiores economias, e nós somos os maiores emissores. Temos a capacidade de, juntos, garantir uma redução de emissões que seja compatível com esse limite, ou então, não. Então, vamos para 2ºC, 3ºC, e aí, sabe-se lá o que vai acontecer. Os riscos são exponenciais. É uma coisa, assim, um pouquinho mais sofisticada para se entender a importância do Brasil dizer que vai entregar esse ano. Não é que ele disse que ele vai tentar, ele prometeu que vai entregar. Então, esse é um compromisso bem importante, porque o que precisamos é que essas 20 maiores economias, primeiro que elas sejam as primeiras a ir lá e colocar seu plano, porque se os países que vierem com compromissos na sequência vão ter que seguir a liderança deles. E, da mesma forma, se eles colocarem planos fracos, mesma coisa. Então, é uma espécie de jogo comparativo, para ver quem que vai fazer melhor, quem que vai fazer antes, e aí vamos ver se coletivamente conseguimos elevar a ambição de todo mundo para a coisa ficar melhor. Se todo mundo colocar boas propostas na mesa, conseguimos garantir esse 1,5°C. Hoje, as propostas que já existem, elas nos levam a um aquecimento de 2,4°C. É bastante coisa. É equivalente a não ter mais corais, viver períodos de seca muito mais extremos e assim por diante.
Recentemente você publicou um artigo com um "manifesto contra o fim do mundo". O que seria isso?
Tem hoje uma narrativa muito presente na imprensa, não só no Brasil, mas mundo afora, que acha que já deveríamos jogar toalha. Que não tem o que fazer. Então existe uma interpretação de que, na verdade, se já passarmos um grau e meio já é catastrófico. E aí temos que ter um certo cuidado, porque tem que ser realista, tem que assumir que o risco é muito alto, por isso que se fala hoje de emergência climática, porque é risco alto e pouco tempo para fazer as coisas acontecerem, mas muita gente também já está caindo nesse "fim do mundismo" de achar como já que é muito difícil, vamos jogar toalha, não vamos fazer nada, e aí os poluidores adoram isso. Porque eles falam, "bom, então vamos continuar fazendo o que estamos fazendo". E a coisa vai ficar muito pior do que já estava.
Que medidas emergenciais deveriam constar no NDC?
O Brasil tem uma oportunidade de fazer coisas muito imediatas, que podem ter efeitos de curto, mas também de longo prazo. Uma dessas medidas é aprovar o chamado mercado regulado de carbono. Isso aí tem muita confusão em torno desse tema, mas o que importa é que ele vai fazer a indústria brasileira se descarbonizar mais rápido, que vai ter um preço nas emissões. Basicamente, quem polui tem de pagar. Essa é primeira coisa. Tem um projeto de lei bastante avançado no Congresso. Isso está na mão e está atrasado. Outros países já têm. A outra coisa é aprofundar. Estamos vendo um bom resultado da redução do desmatamento na Amazônia. Pelo que eu ouvi, tem uma projeção de uma redução de 50% nesse ano, que é positivo, mas é muito desmatamento ainda. Reduzimos muito, mas ainda há muito chão pela frente. Então, aprofundar muito essas medidas de combate. O Cerrado também está aí com uma situação muito preocupante, com aumentos. Essa é uma outra questão. Terceiro ponto que o governo precisa se ocupar é com a questão dos leilões de energia renovável. Infelizmente, estamos vendo muitos leilões ainda de gás e carvão, mineral tão importantes. E, por outro lado, tem um monte de projetos de renováveis esperando e os leilões não necessariamente estão acontecendo. Isso é bem importante, porque não vamos conseguir fazer transição se não colocar mais renovável no sistema. Tem algumas outras duas questões: estabelecer um cronograma para a transição dos combustíveis fósseis, quando é que começa e qual é a data limite aí para explorarmos petróleo e gás, e carvão. Mas essa é uma definição que não pode ser feita da noite para o dia, mas que ela não está em discussão. Por último, é a questão da adaptação de um desastre climático. Acho que o Rio Grande do Sul, muito infelizmente, ainda está em recuperação desse processo, enquanto o Pantanal está na fase da resposta. E aí entra o que o governo federal deu alguns passos, mas, por exemplo, mas não investe em infraestrutura resiliente, ainda não tem essa preocupação de se adaptar a essas novas condições climáticas.
Sobre as secas e queimadas em curso no país. Quais ações imediatas são necessárias?
Tudo que fizermos no curto prazo vai ter consequências de longo prazo. Então, não tem um botão para apertar hoje e o efeito vir agora. O efeito vai demorar para acontecer. Mas se pudéssemos dizer que tem uma coisa que poderia estancar, de fato, esse problema, é aquilo que a Agência Internacional de Energia, que é o órgão mais renomado do mundo nessa área, já tem falado desde 2021, que é cessar, literalmente parar, de explorar novos campos de petróleo e gás. Se queremos limitar, você tem que parar. Pode parecer uma maluquice, mas não é. Porque enquanto estivermos jogando carbono na atmosfera, o problema não vai diminuir. A seca vai piorar. As condições climáticas vão ser cada vez mais difíceis de controlar. Então, é com essa matemática que temos de trabalhar. Queremos resolver o problema? Então, tem de parar a emissão. E não vai ter jeito. Vai ter que fazer essa transformação. Ou tomando as oportunidades dela, ou realmente tendo que lidar com as consequências.
Qual papel e responsabilidade você enxerga em uma autoridade climática no Brasil?
Fizemos alguns estudos sobre isso. Inclusive entregamos algumas propostas na transição do governo e outras no ano passado. O que enxergamos hoje, que o Instituto Talanoa defende, é que talvez não seja só uma autoridade. Na Austrália eles têm duas. Eles têm uma para cuidar da questão de regular as emissões e outra que está trabalhando lá para implementação, para verificação dos planos. Cada país escolhe um modelo. Mas o que estamos defendendo é que o Brasil tenha o que hoje ele não tem, uma autoridade para regular a emissão. Então, toda essa parte do mercado de carbono, de colocar limites para as empresas, para as indústrias. Isso é uma função bem especializada, quase um Banco Central, uma coisa bem específica. E isso aí tem várias modalidades. Você pode, inclusive, deixar ligado ao Ministério da Fazenda, que eu acho que até seria o ideal. Você ter ali alguém com essa função econômica, regular a emissão é uma função econômica. E uma segunda função, que pode estar junto dessa mesma autoridade ou não, é essa da adaptação. Hoje nós não temos nenhum órgão no Brasil que tenha essa missão e que esteja garantindo, por exemplo, que estamos investindo em brigadista, em defesa civil, em preparação da população de forma antecipada. Estamos sempre correndo atrás do prejuízo. Para fazer essa adaptação, o ideal era termos uma agência específica também. Essa pode ser ligada à presidência como uma espécie de um gabinete ou então em pastas setoriais. Mas acho que a briga não pode ser sobre quem vai ser o dono, se é o Ministério A ou B. Isso é muito pequeno. Estamos com um problema enorme. O que precisamos garantir é que essa autoridade saia. E os sinais que temos escutado da Casa Civil, que recebeu propostas, são ainda de uma amorosidade. Tanto que essa autoridade não foi anunciada aqui (na ONU, em Nova York). É preocupante. Espero que não seja um sinal de que ela não vai sair.
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