Engessamento ou enregelamento não são palavras bonitas. Mas também não costumam ser novidade para definir o Mercosul, um bloco econômico limitado, desde sua criação, por arranjos ideológicos de quem ora ocupa no poder. Por isso, elas deverão voltar ao glossário do grupo de países na era Javier Milei na Casa Rosada. A saída da Argentina do Mercosul, algo sugerido pelo então candidato e agora presidente eleito, seria muito mais produto de arroubo de Milei para provocar impacto midiático do que uma medida analisada estrategicamente. Não é impossível, uma vez que Milei ainda é um enigma a ser desvendado, mas é mais provável que ele tente mudar o bloco por dentro do que arrisque uma jogada de isolamento regional. Milei já enviou sinais de moderação no segundo turno e que ecoam no Palácio do Itamaraty, em Brasília. Em vez de "sair" do bloco, fala em "modernizá-lo", alterando sua forma de funcionamento.
Aliás, nesse novo discurso, percebe-se o papel que terão vozes moderadas da centro direita argentina, como as do ex-presidente e empresário Mauricio Macri e da ex-candidata da coalizão Juntos por el Cambio Patricia Bullrich. O papel que terão no governo ou nos bastidores e o quanto Milei estará disposto a escutá-los serão fundamentais nesse jogo.
Ainda que a Argentina de Milei permaneça no bloco, não significa que haverá convivência pacífica com os vizinhos. O argentino desequilibrou a balança ideológica do Mercosul para a direita, estando mais próximos de Luis Lacalle Pou (Uruguai) e de Santiago Peña (Paraguai). São vizinhos com perfis completamente diferentes. Peña, por exemplo, é ex-membro do Conselho de Administração do Banco Central do Paraguai, uma instituição que, na Argentina, Milei promete extinguir. Mas são presidentes que, em geral, críticos às amarras do bloco e que têm buscado brechas para negociações unilaterais com outros parceiros.
O mais provável é que haja um esfriamento do Mercosul, como ocorreu durante o mandato de Jair Bolsonaro no Brasil. Aliás, a palavra que Milei vem usando para se referir ao grupo de países, "modernização", é a mesma que o então presidente brasileiro utilizava em seus anos no Planalto. Na cúpula do Mercosul realizada em Bento Gonçalves, em 2020, por exemplo, defendeu "reformas" no bloco, mas afirmando que o Mercosul era "parte da solução". Para não dizer que são as mesmas expressões adotadas por Milei de uns meses para cá, é pelo menos semelhantes no tom.
Nos quatro anos de mandato de Bolsonaro, houve contradições no trato com o Mercosul: ao mesmo tempo em que o presidente mantinha alinhamento automático com os governos americano, de Donald Trump, e israelense, de Benjamin Netanyahu, menosprezando organismos multilaterais, alavancou o acordo Mercosul-União Europeia. O esboço de tratado logo esbarrou nos entraves impostos pelos europeus pela falta de compromissos ambientais, mas essa é outra história.
A cúpula na serra gaúcha, naquele 2020, foi permeada pelo clima de frieza nas relações: o então presidente uruguaio Tabaré Vázquez não viera ao Rio Grande do Sul por discordar da participação da autoproclamada presidente da Bolívia Jeanine Áñez e por entender que Evo Morales havia sido retirado do poder por um golpe, em 2019.
A promessa de Milei de retirar a Argentina do Mercosul é do início de campanha, mas muita água correu desde então pelas águas do Prata: as alianças para o segundo turno e a pressão de setores econômicos provavelmente o fizeram moderar o discurso. Porém, dentro do bloco, mudanças irão dificultar as negociações da agenda. A primeira delas já paira no ar, no encontro de cúpula marcado para o dia 7 (a três dias da posse de Milei), em que o Brasil irá entregar a presidência pro tempore do bloco, no Rio de Janeiro. Recém-chegado da cúpula do clima de Dubai, a COP28, Lula pretendia anunciar a conclusão do acordo com a UE. Durante os últimos meses, negociadores dos dois blocos se reuniram, presencial e virtualmente, para acertar detalhes. Representantes do Mercosul reafirmaram aos europeus compromissos já assumidos, sobretudo a respeito do desenvolvimento sustentável e de comércio. Mas o vento virou. E, se havia cautela, a conversa agora, no Itamaraty, é de descrença.