Cheguei e saí de Sderot sob bombardeio. Com cerca de 27 mil habitantes, esta é a cidade israelense mais próxima da cerca da Faixa de Gaza, a um quilômetro e meio, aproximadamente do território israelense
Entrar nessa simpática cidade lembra de alguma forma a sensação de visitar os municípios da serra gaúcha: ruas bem cuidadas, praças impecáveis e canteiros de flores. Mas basta nos aproximarmos da área central para entendermos porque essa é a mais bombardeada das cidades de Israel. E não apenas neste momento histórico, ao qual todos estamos testemunhando. Tem sido assim há anos.
A proximidade do território palestino, dominado pelo grupo terrorista Hamas, faz de Sderot o mais odiado agrupamento humano do mundo pelos radicais. Foi a partir daqui que os extremistas iniciaram, no sábado, seu festim de morte sobre Israel, no mais grave atentado terrorista da história do Estado judeu.
De Sderot, eles se espalharam pelos campos vizinhos, açoitando jovens em uma festa de música eletrônica, invadindo residências de famílias e arrastando reféns para dentro de Gaza.
Blindados na estrada
Para brasileiros acostumados a longas distâncias, não se leva muito tempo para chegar a Sderot a partir de Tel Aviv: no máximo uma hora e 20 minutos de carro. Percebe-se, no entanto, nesse curto espaço de tempo, mudanças de cenário.
Até Ashkelon, a rodovia israelense que é uma espécie de freeway, é movimentada. À medida que nos aproximamos de Sderot, a frequência dos carros civis diminui. Aumenta o número de veículos militares.
Lá pelas tantas, por exemplo, paro o veículo no sinal vermelho e recebo um buzinaço de um Hummer do exército israelense com quatro soldados a bordo e municiado por uma metralhadora M60, que os israelenses chamam de MAG. A partir daí, o contato com blindados se torna algo habitual.
É importante esticar o olhar para além da rodovia, nos campos que acompanham a estrada. Observando-se bem, é entre arbustos e árvores que se consegue distinguir grupos de combatentes israelenses que se acumulam nas franjas da Faixa de Gaza para a esperada invasão por terra. Eles estão lá, basta olhar bem.
Abrigos antiaéreos públicos
Em Sderot, não se passam mais do que 30 segundos sem que se ouça uma explosão. Às vezes mais longe, por vezes mais perto. O estampido se torna quase rotina, entre o cantar de pássaros e o miado de um filhote de gato próximo ao hospital onde parei para fazer fotos. Sim, com os moradores entocados dentro de casa desde sábado, detalhes como esses, que passariam despercebidos na rotina da cidade, se sobressaem.
Uma explosão ali, outra acolá são parte do cotidiano da guerra. Mas para os residentes de Sderot,o conflito não começou no sábado. O município vive ameaças há anos, por isso, há toda uma estrutura preparada para o conflito.
Próximo ao hospital da cidade, há um abrigo antiaéreo público a cada 100 metros. O primeiro que conheço é simples: cinco blocos de concreto aos lados e no teto, perto de um campo de futebol. No Brasil, diríamos que parece um pedaço de terreno baldio: uma mala velha, esquecida por alguém, pedaços de pão torrado no chão e alguns livros no interior.
Aqui, ganha status de refúgio para onde pessoas desesperadas no momento em que as sirenes disparam. Elas têm 15 segundos para se abrigar.
Há outras proteções. Um dos abrigos, por exemplo, a 200 metros dali, tem energia elétrica a partir de painéis solares no teto, colorido nas paredes externas e, em uma das paredes, uma dedicatória abaixo de um desenho que lembra uma caixa com um buraco apenas: “Dedicado em honra ao meu querido pai, Graham Landau. Com amor, Lula Landau."
No primeiro instante em que os conheci, fiz imagens com algum grau de curiosidade. Mas, às 16h57min (10h57min), esse tipo de estrutura de concreto ganhou nova interpretação para mim.
Eu estava a cem metros do abrigo quando dois caças cruzaram o céu. Pelo estrondo, cliquei no botão de gravar da câmera e apontei o celular para o céu azul da tarde de quinta-feira. Quando confirmei que estava gravando, as sirenes começaram a sonar.
Corri para o abrigo decorado com a mensagem daquela filha ao pai. No instante seguinte, começaram explosões mais próximas do que as que eu havia ouvido até então. Dois colegas, jornalistas espanhóis, também se abrigaram ali. Não durou mais do que 20 segundos. No céu, restou um rastro, em cruz, de fumaça branca, indicando que um foguete do Hamas havia sido interceptado — e destruído — pelos mísseis do Domo de Ferro, o famoso sistema antimísseis israelense.
Susto para mim. Para os moradores de Sderot, habituados a esse tipo de situação, foi apenas mais uma demonstração da eficiência do complexo de proteção do país, que capta e destrói mais de 90% dos artefatos disparados pelo Hamas, a um quilômetro dali. É essa confiança que faz moradores construírem casas, manterem suas rotinas e viverem perto demais do território controlado pelos radicais do Hamas.
Grávida ferida por faca
Não há quem entrevistar em Sderot, porque as pessoas estão trancadas em suas casas. Mas uma das raras moradoras que circula pela área central, tem uma história terrível a contar. Ela mantém o tom da entrevista, falando sobre como a comunidade se habituou aos disparos do Hamas e sobre a confiança no domo de ferro. Mas, de repente, entre o inglês e o espanhol, começa a chorar.
Lembra de que, no sábado, quando por terra os terroristas romperam o cerco de proteção, físico e simbólico que separa Gaza de Israel, ela presenciou a cena: uma vizinha grávida teve a barriga ferida por uma faca dos invasores. A essa altura, uma jornalista abraça a mulher. Eu pensei em gravar a entrevista, mas não tive coragem de apertar o "rec".
Sensação de impotência
Sderot é cercada por bosques e campos. Há vários kibutzim (comunidade administrada de forma coletiva) na área. O kibutzim de Beeri, por exemplo, palco de uma matança do Hamas, no final de semana, fica muito próximo daqui. É possível imaginar como, uma vez rompida a cerca que separa o território — um complexo de segurança que até sábado era impenetrável, como em poucas fronteiras do mundo — os terroristas puderam se infiltrar pelas árvores, arbustos e estruturas de alvenaria.
No meio da tarde, voltei ao carro para circular por Sderot. O Waze — aplicativo, que, aliás, é israelense — começa a alertar sobre o risco: “Engarrafamentos, perigos e outros wazers podem não aparecer na sua tela neste momento”. Sem abrigos antiaéreos por perto, ao menos a olho nu, decido voltar, sem o app de trânsito, à área conhecida. Foi, por instantes, uma sensação de impotência: o que fazer se as sirenes tocassem? Não havia pra onde correr. As casas estavam vazias, abandonadas. Ninguém pelas ruas. Pra onde ir?
Eram 17h55min (11h55min pelo horário de Brasília) quando fiz minha última entrada ao vivo, no Jornal do Almoço, na RBS TV. Com o intensificar do som das explosões, cada vez mais perto, retorno a Tel Aviv. Na rodovia, enquanto acelero, ouço dois estrondos muito próximos. Cheguei e saí de Sderot sob bombardeio.