A caixa de Pandora foi aberta lá atrás, em junho de 2022. Naquele mês, a Suprema Corte dos Estados Unidos mudou o entendimento de 50 anos e passou a considerar que o acesso ao aborto não seria mais um direito constitucional, revertendo a jurisprudência aberta pelo icônico Caso Roe vs. Wade. Desde então, o desequilibrio da balança da mais alta Corte de Justiça americana, favorável a posturas conservadoras nos costumes, tem protagonizado retrocessos em leis icônicas americanas, contrárias a discriminação em locais públicos e que protege mulheres, minorias raciais e religiosas e pessoas com deficiência.
O mais recente reflexo do perfil conservador fora do comum na Suprema Corte foram duas decisões na semana passada: uma que chancelou a escolha de um evangélico do Colorado de se recusar a prestar serviços como web designer para um casal gay, contrariando uma lei estadual que proíbe discriminação em negócios comerciais. O homem alegou questões de fé, tendo como base a Primeira Emenda, que garante liberdade religiosa e de expressão. A outra, que encerra décadas de políticas de ação afirmativa, passou a proibir universidades de considerar a raça em processos de admissão de candidatos.
Não são as únicas. Outra decisão do tribunal reverteu a condenação de um homem que enviou mensagens com ameaças de morte a uma cantora pelo Facebook. E uma quarta garantiu o amplo direito de cidadãos de andarem armados em público, mesmo no momento em que os EUA sofrem uma epidemia de tiroteios em escolas e universidades.
Com raríssimas variações, o placar das deliberações tem sido 6 a 3. Não por acaso. Essa é a divisão ideológica na Corte, que, historicamente, era conhecida pelo equilíbrio.
Sinais dos tempos de polarização? Não só. Essa supermaioria conservadora é herança de Donald Trump, um presidente que, em quatro anos de mandato, indicou três magistrados para a Suprema Corte - algo incomum.
No atual corpo de juízes, um foi indicado por George W. Bush (pai), Clarence Thomas (conservador); dois por Bush filho, John Roberts e Samuel Alito (conservadores); dois por Barack Obama, Sonia Sotomayor e Elena Kagan (liberais); e um por Joe Biden (Ketanji Brown Jackson, liberal).
Trump e seu conservadorismo foram favorecidos por manobras políticas e, de certa forma, pelo destino. Antonin Scalia, um juiz muito conservador, morreu em fevereiro de 2016. Obama queria indicar o sucessor, mas os republicanos, que tinham maioria no Congresso, o impediram sob o argumento de que era seu último ano de mandato. Onze dias depois de assumir, em janeiro de 2017, Trump indicou Neil Gorsuch.
O ponto de desequilíbrio veio com a morte de Ruth Bader Ginsburg, ícone liberal e dos direitos das mulheres, em 2020. Para o lugar, o republicano indicou Amy Coney Barrett. A balança ficou em 5 a 4. Em 2018, com a aposentadoria de Anthony Kennedy, um centrista, Trump consolidou a vantagem conservadora, indicando Brett Kavanaugh.
Em setores liberais ou progressistas, no sentido americano, que adota essa denominação para posturas de costumes mais ligados à esquerda, há forte preocupação. Começou com a reversão de direitos reprodutivos, agora atingiu os direitos civis, podendo enfraquecer a promoção da diversidade também no mercado de trabalho. O próximo e perigoso passo pode ser a criação de leis que dificultem minorias de terem acesso ao voto. Mais uma prova de que o trumpismo não acabou com Trump e de como um presidente, mesmo fora do poder, é capaz de deixar uma herança longeva capaz de abalar os sistemas político e social de uma nação.