Um dos temas mais polarizados nos Estados Unidos, o direito ao aborto tem mobilizado a opinião pública, o meio político, ativistas, classe médica e imprensa.
No dia 2, veio a público, por meio do site Politico, um rascunho interno de uma futura e provável decisão da Suprema Corte americana que indica votação favorável dos magistrados da mais alta instância judicial americana que revogaria o direito à interrupção da gravidez, garantida como constitucional e nacional desde 27 de janeiro de 1973, no famoso caso Roe vs. Wade. Pelo rascunho de 98 páginas, na decisão, cinco juízes, Samuel Alito, Clarence Thomas, Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barret, todos conservadores, votariam para derrubar o direito. Os progressistas Stephen Breyer, Sonia Sotomayor e Elena Kagan, escolheriam mantê-la. Não se sabe como John Roberts, presidente da Corte e de viés conservador, votaria, uma vez que ele tem se apresentado como mais moderado de um tempo para cá.
Trata-se de um debate sobre um caso específico: uma legislação aprovada pelo Mississippi, que impede o aborto após 15 semanas de gravidez. Mas se essa decisão passar pela Suprema Corte, abrirá um precedente que permitirá que outros Estados adotem regras similares - mais de 20 já informaram que irão proceder assim.
Desde 2010, muitos Legislativos estaduais, onde o Partido Republicano (conservador) é maioria, aprovaram leis que dificultam o acesso de mulheres aos procedimentos para interrupção da gravidez. O Texas, por exemplo, aprovou uma lei que proíbe o aborto após seis semanas de gestação - a Suprema Corte manteve a decisão. A eleição de Donald Trump, em 2016, e o crescimento da extrema direita politizaram ainda mais o tema: uma decisão que deveria ser exclusivamente das mulheres passou a ser, cada vez mais, vista como subordinada ao Estado. Um trecho do documento vazado, escrito pelo juiz conservador Samuel Alito, com data de 10 de fevereiro e reconhecido como autêntico, é uma pérola do retrocesso ao dizer que a decisão Roe vs. Wade (que abriu caminho para o passo histórico de tornar o aborto legal, em 1973) conflita com a Constituição americana e retira das mãos daqueles que deveriam decidir sobre o aborto, os governantes eleitos, esse poder.
O argumento dos grupos de defesa dos direitos das mulheres é de que as gestantes de camadas pobres serão as mais prejudicadas. Quem tem recursos financeiros poderá migrar para Estados onde o aborto ainda será permitido - Oklahoma era, até pouco tempo atrás, considerado um Estado refúgio, mas também criminalizou a prática. A quem não tem dinheiro restarão clínicas irregulares e ficarão expostas a procedimentos de risco. Uma pesquisa do Pew Research Center indica que 58% dos americanos são favoráveis ao aborto legalizado, contra 39% que acham que ele deve ser proibido.
O crescimento do conservadorismo nos EUA é refletido na Suprema Corte. O próprio Trump, quando candidato, admitia que usaria seu poder de indicar magistrados para o Tribunal com vistas a que votassem a favor de interesses conservadores - além do aborto, a flexibilização das leis que restringem o acesso às armas, por exemplo. Em seu último ano de governo e já em campanha, o presidente indicou a terceira magistrada de seu mandato, Amy Coney Barrett, em uma queda de braço com os democratas no Congresso, que consideravam a ação ilegal - anos antes, Barack Obama foi barrado pelos republicanos, em situação semelhante, ao tentar fazer o mesmo. A escolha de Amy, aprovada pelo Senado, pesou ainda mais a balança para o lado conservador. A confirmação de Ketanji Brown Jackson, indicada por Joe Biden recentemente e já aprovada, não altera a gangorra ideológica, uma vez que ela substituirá, em junho, outro progressista, o atual ministro Stephen Breyer.